quinta-feira, abril 17, 2008

Artigos publicados

65. Para além do indivíduo ................. 16-04-2008
64. Uma liberdade ocidental .............. 02-04-2008
63. Renovação: uma miragem? .......... 19-03-2008
62. Salário mínimo (II) ..................... 05-03-2008
61. Salário mínimo ............................ 20-02-2008

60. Tempo de reflectir ...................... 06-02-2008
59. O fumo dos outros (II) ................ 23-01-2008

58. 'Citizen' Cadilhe ........................... 09-01-2008
57. Uma estrela em 2007 ................. 22-12-2007
55. Para quê tantos licenciados? ........ 28-11-2007
54. Morta à nascença ......................... 14-11-2007
53. Ética e rendas económicas .......... 31-10-2007
52. Os encantos de Che ..................... 17-10-2007
51. “Abu Ghraib” dos pequeninos .... 03-10-2007

50. “Os melhores” ............................ 19-09-2007
49. Novas oportunidades? ............... 05-09-2007
48. Credibilidade ............................. 22-08-2007
47. Repensar o PEC ......................... 08-08-2007
46. Plataforma liberal ...................... 25-07-2007
45. O direito à indiferença ............... 11-07-2007
44. Racionalidade encarcerada ....... 27-06-2007
43. Contas individuais ..................... 30-05-2007
42. Mediocridade e policiamento .... 16-05-2007
41. Taxa plana, taxa óptima ............ 02-05-2007

40. Arquivar o inconveniente ......... 18-04-2007
39. O admirável mundo da Ota ....... 04-04-2007
38. Alternativas liberais .................. 21-03-2007
37. Da selecção amostral ................ 07-03-2007
36. Do voto estratégico ................... 21-02-2007
35. Uma excepção ponderada ........ 07-02-2007
34. 7 x Sim ...................................... 24-01-2007
33. Saber incentivar ....................... 10-01-2007
32. Rigor criativo ........................... 27-12-2006
31. “Na margem” ............................ 13-12-2006

30. Conluio nas entrelinhas ............ 29-11-2006
29. Realismo e incoerências ........... 14-11-2006
28. Afinar a pontaria ...................... 31-10-2006
27. Um problema, dois desafios ..... 18-10-2006
26. Mudar um paradigma ............... 04-10-2006
25. Licença para pensar ................. 20-09-2006
24. O retorno das regras ................ 06-09-2006
23. Sob o signo do Aforismo .......... 23-08-2006
22. O desafio da especialização ..... 09-08-2006
21. Borges, A. ............................... 26-07-2006

20. A incerteza de julgar ............... 12-07-2006
19. O fumo dos outros ................... 28-06-2006
18. Ondas de paixão ...................... 14-06-2006
17. Da bondade da gorjeta ............. 31-05-2006
16. "Electrólise" ............................. 17-05-2006
15. O valor da escassez .................. 03-05-2006
14. Fora de mão ............................. 19-04-2006
13. A minuta .................................. 05-04-2006
12. Quotas e subsídios .................... 22-03-2006
11. Deficiências .............................. 08-03-2006

10. As caricaturas e o sagrado ........ 22-02-2006
9. Casamentos e seguros ................ 08-02-2006
8. Uma questão de coragem ........... 25-01-2006
7. O dever do próximo PR .............. 11-01-2006

6. Apostas e expectativas ............... 28-12-2005
5. SIDA e Economia ........................ 14-12-2005
4. O poder das sondagens (II) ........ 30-11-2005
3. O poder das sondagens (I) .......... 16-11-2005
2. Os limites do consenso ............... 02-11-2005
1. A teoria do (des)encontro .......... 19-10-2005

quarta-feira, abril 16, 2008

Para além do indivíduo

O ‘team resoning’ é uma característica essencial do homem, concomitante da identificação grupal, e influenciada pelo modo como evoluímos.

Um “dilema de prisioneiros” é qualquer situação estratégica em que: (1) os agentes podem cooperar ou não; (2) cada agente prefere, para cada hipotética escolha do outro, não cooperar; (3) o resultado de não cooperação é inferior ao de cooperação. Exemplos disto são a corrida às armas ou a publicidade na indústria tabaqueira. Cooperando, obter-se-iam diferenciais no poder dissuasor de cada parte e níveis de vendas semelhantes aos de não cooperação, mas com menos custos. Na vida real, muitos indivíduos cooperam em situações deste tipo. Será racional? Michael Bacharach responde que sim, com base na ideia de “team reasoning”, exposta em “Beyond Individual Choice, Teams and Frames in Game Theory”.

Um indivíduo ‘team reasons’ quando, identificando-se como parte de uma “associação”, se interessa antes de tudo pelo resultado óptimo para essa associação, pensando depois na forma como deve agir para que esse resultado seja alcançado. A componente deontológica é importante; o individualismo metodológico é desafiado. Havendo ‘team reasoning’, a agência primordial cabe ao conjunto de indivíduos, não a cada um. Num dilema de prisioneiros, ambos percebem (e aqui entra o ‘framing’: importa a forma como os indivíduos “lêem” cada “jogo”, que é mais do que uma mera colecção de ‘payoffs’) que aquela situação convida à pergunta “como devemos agir?”, e não “como devo agir?”, tornando o resultado cooperativo menos surpreendente.

Um indivíduo ‘team reasons’ quando, identificando-se como parte de uma “associação”, se interessa antes de tudo pelo seu resultado óptimo, pensando depois na forma como deve agir para que ele seja alcançado.

O “team reasoning” só relevará em algumas situações sociais. Note-se que nunca está em causa diminuir a liberdade do agente, obrigá-lo a fazer parte de um grupo. Os contributos de Bacharach pertencem ao domínio do positivo, não do normativo. Resultam de uma reflexão que abrange os campos da filosofia, biologia, psicologia, economia, antropologia e sociologia. Bacharach sugere que o ‘team resoning’ é uma das características essenciais do homem, concomitante da identificação grupal, e largamente influenciada pelo modo como evoluímos.

Do ponto de vista político, são ideias que reforçam a atractividade de um liberalismo comunitário face a um liberalismo atomista – um tema que seria interessante explorar, mas outros projectos chamam por mim. Despeço-me aqui dos leitores, agradecendo a atenção e os comentários. Agradeço também ao Martim Avillez Figueiredo, pelo desafio que me lançou há dois anos e meio para escrever neste jornal, e ao André Macedo pelo incentivo a continuar. Ao Ricardo da Costa Nunes, sempre disponível e inteligente, um particular obrigado.

quarta-feira, abril 02, 2008

Uma liberdade ocidental

Portugal pode, a seu tempo e de forma cautelosa, equacionar a regulamentação da eutanásia voluntária, e apenas desta.

Numa óptica liberal, faz tão pouco sentido penalizar o “suicídio” como o “suicídio assistido”. Tratando-se, em qualquer dos casos, de uma decisão consciente de um adulto, o segundo difere do primeiro por nele participar uma terceira pessoa – de livre vontade. Uma variante do suicídio assistido é o “testamento vital”, em que o indivíduo indica, em antecipação e por escrito, a forma como deseja ser tratado em contingências futuras (sendo desejável que se exija uma actualização assídua de tal contrato). A punição de qualquer destes casos de “eutanásia voluntária” – ilustrada em filmes como “Mar adentro” ou “Invasões bárbaras” – implica juízos paternalistas – que rejeitamos.

No pólo oposto está a “indução da morte”, em que a morte é causada por um terceiro (médico, parente, amigo), sem autorização explícita para tal. (Com as muitas diferenças que separam as duas situações, o “abate misericordioso” de animais em sofrimento encaixa-se nesta categorização). Muitos equivalem-na a um assassínio. Ninguém tem direito a dispor da vida de uma outra pessoa. A aceitação deste tipo de “eutanásia involuntária e agressiva” introduziria uma arbitrariedade preocupante em qualquer sistema, agravada no nosso caso, se pensarmos no abandono e na falta de autonomia dos nossos idosos e no estado “de tanga” em que continuamente navegamos. Nem pensar, portanto, em legalizar esta forma de eutanásia.

A punição de qualquer caso de “eutanásia voluntária” – ilustrada em filmes como “Mar adentro” ou “Invasões bárbaras” – implica juízos paternalistas – que rejeitamos.

Entre os dois extremos atrás descritos encontra-se a decisão de diminuição do uso de terapias que prolongam a vida de um doente. Eticamente, é legítimo que um médico ajuste a terapia de um doente, tendo em conta o seu sofrimento. Realisticamente, essa é a prática corrente – e milenar – entre os médicos. Este tipo de “eutanásia involuntária e passiva” não carece de qualquer alteração.

Em suma, Portugal pode, a seu tempo e de forma cautelosa, equacionar a regulamentação da eutanásia voluntária, e apenas desta. Note-se que, uma vez que é o próprio a realizar o acto desejado ou a requerê-lo inequivocamente, a pressão externa por motivos egoístas fica minimizada, sendo leviano falar em “cultura de morte” nesse contexto. Defender que a vida é um dom divino e que nenhum homem tem direito a tirá-la é uma opinião aceitável na esfera privada, mas impô-la na esfera pública é próprio de certos países islâmicos, não de democracias liberais ocidentais. A dignidade de cada um implica o direito à sua própria vida.

quarta-feira, março 19, 2008

Renovação: uma miragem?

Poucos ou nenhuns sociais democratas parecem disponíveis para disputar a liderança do partido antes de 2009. Percebe-se porquê.

Por uma questão de princípio, qualquer novo líder partidário merece o benefício da dúvida. Da minha parte, Luís Filipe Menezes teve-o. Passados seis meses, o diagnóstico é claro: um falhanço em toda a linha. O autarca de Gaia não foi capaz de apresentar um projecto coerente e alternativo para o país (“via programática”), nem de entusiasmar os portugueses (“via carismática”). Apesar disso, ridiculamente reclama ambas (“via Obâmica”). Os seus sucessos resumem-se à conquista da simpatia das televisões privadas com uma proposta avulsa sobre a RTP, ao ressuscitar de Pedro Santana Lopes e à inscrição de Ribau Esteves nos anais da comédia portuguesa. É obra.

Marx faz falta na nossa vida política. Precisamos de líderes políticos que só queiram como apoiantes indefectíveis indivíduos que estejam dispostos a ser os seus mais contundentes críticos. Uma raridade no país, um oxímoro no ‘inner circle’ do autarca de Gaia, onde se contam “vigilantes” conhecidos por ver a política como uma mera luta de galos, levando qualquer discussão da sala de aula para o recreio. Quem não vibrou com textos na imprensa que responderam a críticas políticas dirigidas a Menezes referindo a sua qualidade enquanto pediatra e a sua média de curso respeitável?

Precisamos de líderes políticos que só queiram como apoiantes indefectíveis indivíduos que estejam dispostos a ser os seus mais contundentes críticos.

Depois de anos a criticar o ex-líder do PSD e os “intelectuais bem pensantes”, o actual líder social-democrata deixou bem claro que está ao leme de pedra e cal até 2009. Ao contrário de Marques Mendes, Menezes não coloca – sequer teoricamente – a hipótese de, em caso de extremo prejuízo para o PSD ou para o país, abandonar ou abrir à disputa o seu actual cargo. A proposta sobre as quotas dos militantes faz dele um simples “barricado”. Lamentável. Poucos ou nenhuns sociais democratas parecem disponíveis para disputar a liderança do partido antes de 2009. Percebe-se porquê. Mas pactuar com a morte lenta que ele vai conhecendo trará facturas ainda mais pesadas a alguns presentes mas ausentes.

Fora do PSD, a criação de um partido mais liberal que o PS – e credível – nunca viu maré tão favorável. Contudo, algumas elites inspiradas por tal projecto parecem demasiado avessas ao risco, como escreveu João Cardoso Rosas. O espaço não socialista precisa de renovação e de clarificação, mas a “crise” é tão profunda que até as excelentes oportunidades por ela criadas prometem muito pouco. Ou talvez o tempo não me venha a dar razão.

quarta-feira, março 05, 2008

Salário mínimo (II)

Ainda abundam, entre alguma esquerda, os discursos “éticos”, reveladores de um desconhecimento sobre como funciona um mercado livre.

Nos EUA, o salário mínimo subiu recentemente de 5.15 para 7.25 dólares/hora.Em 1968, ele equivalia a 90% do nível de pobreza; em 2005, a apenas 50%. Na Europa, discute-se a desejabilidade de uma política comum sobre o salário minimo, nomeadamente, impondo que ele seja uma percentagem comum – 60%? – do rendimento médio de cada país. (Não confundir com a ideia assustadora de um valor nominalmente comum na UE, defendida por Miguel Portas).

Como ciência intrinsecamente “marginalista”, a economia neoclássica diz-nos que um empregador quererá pagar um salário igual ao valor da produtividade “marginal” do trabalho, num contexto de substituibilidade entre os factores de produção (trabalho, capital, etc). É uma teoria inspirada e aplicável à sociedade industrial do séc. XIX, mas desajustada e insuficiente para pensar a sociedade terciária do séc. XXI. Muito longe da cultura japonesa – onde o conceito de “accionista” é estranho e onde só se entende que uma empresa seja propriedade dos seus trabalhadores –, sabemos, no Ocidente, que pensar no “valor acrescentado” de um trabalhador pode ser redutor.

A ideia de que o salário mínimo acompanhe o nível de riqueza médio de um país é atraente e justa, mas não deve ser regulamentada de forma exacta.

Os trabalhos de limpeza ou de estafeta, mesmo que uma condição sine qua non para a operatividade de um negócio lucrativo, podem ser tão abundantes que permitam remunerá-los a um preço que impossibilite uma vida minimamente digna numa sociedade relativamente rica (pense-se no caso americano). Nesta óptica, somos levados a pensar no valor mínimo que uma hora de trabalho deve ter, por muito poucas qualificações que ele exija. Insistir, sem mais, na “escassez relativa”, significa que esquecemos o fundamental: aquilo que está por detrás da oferta de trabalho – a forma como se valoriza o contributo do trabalhador numa empresa.

A liberdade económica de quem emprega é essencial, mas nem sempre um dado entre nós. Ainda abundam, entre alguma esquerda, os discursos exclusivamente “éticos”, reveladores de um total desconhecimento sobre como funciona um mercado livre e que proporcionam efeitos contrários aos desejados. Legislar nem sempre é a melhor solução. A ideia de que o salário mínimo acompanhe o nível de riqueza médio de um país é atraente e justa, mas não deve ser regulamentada de forma exacta. A resposta a esta questão não pode ser burocrática, impositiva, matemática; tem de ser política, orientada por princípios claros, ponderados e aplicados casuisticamente.

Nota: invista no futuro, vá a www.umpequenogesto.org.

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

Salário mínimo

O poder de mercado de alguns empregadores implica que o salário mínimo tenha menos efeitos que os que ocorrem em “concorrência perfeita”.

Apesar dos receios, a instituição do salário mínimo em Inglaterra teve efeitos positivos no emprego, quantitativa e qualitativamente, de acordo com vários estudos. Um caso é um caso, claro. Daqui não resulta que a criação ou subida do salário mínimo num determinado país seja sempre desejável. Três factores merecem destaque, estando um ligado à especificidade inglesa, os outros, generalistas.

Primeiro, a imigração. Com a instituição de um salário mínimo e a consequente garantia de um certo (e previsível) nível de vida para quem esteja empregado, o incentivo a imigrar aumenta. Imigrantes disponíveis para aceitar qualquer emprego tornam a taxa de desemprego nesse novo fluxo de população activa marginal, puxando a taxa média global para baixo, até ao ponto de melhorar os números globais do desemprego. (Não esqueçamos a possibilidade de criar novos empregos. A Lei de Lavoisier raramente se aplica em economia).

Uma remuneração mais elevada permite, numa lógica contratual, que o empregador exija mais aos seus trabalhadores.

Segundo, o poder de mercado que alguns empregadores têm. Este implica que a instituição do salário mínimo tem, na realidade, efeitos menos significativos que os resultantes de uma situação de “concorrência perfeita”, e que estarão também longe do aumento claro de emprego numa situação de “monopsónio” – inaceitável como modelo para uma economia actual. Sendo o primeiro paradigma redutoramente utilizado por tantos, não só economistas, importa frisar que certas imperfeições no mercado laboral – a imobilidade dos trabalhadores, o conluio de alguns empregadores, a assimetria informacional entre as duas partes – contribuem para que os efeitos na retracção da oferta de trabalho sejam menos significativos do que os habitualmente retratados.

Terceiro, a atractividade relativa do trabalho e do desemprego. Para uma mesma política de apoio ao desemprego, uma subida salarial torna o trabalho comparativamente mais vantajoso para quem o possui. Uma remuneração mais elevada – imposta exteriormente – permite, numa lógica contratual, de reconhecimento mútuo do “choque” sofrido, que, para o mesmo nível de emprego, o empregador exija algo mais aos seus trabalhadores, contrabalançando o impacto imediato nos custos.

Como outros, este último efeito não é apreensível através de uma análise estática e superficial da interacção entre as curvas de oferta e de procura de trabalho. Encontrar um ponto de equilíbrio entre as duas curvas e perceber como ele se altera quando elas se movem não basta. Há que procurar entender o que está por trás de cada uma delas, o que as influencia em cada momento e de forma dinâmica. Um tema para outra análise.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Tempo de reflectir

Comum a Cavaco e a Wolf é a ideia de um conluio tácito em elites políticas e empresariais, que promove remunerações difíceis de justificar.

“Injustificados” e “desproporcionados” – assim qualificou Cavaco Silva os salários de altos dirigentes de empresas portuguesas, no seu discurso de Ano Novo. A nota “moralizadora” – para muitos de duvidosa necessidade – ficou marcada por uma alusão vaga à disparidade entre os salários médios dos trabalhadores e dos gestores. Num país cheio de inveja, ficou a ideia de uma invectiva contra os “ricos” e os “bem sucedidos”. Curiosamente, vários gestores saudaram as preocupações partilhadas. O que é surpreendente, ou talvez não: há discordâncias públicas que se pagam caro. Certo é que o discurso presidencial permitia leituras diversas e, com alguma caridade, o retrato não sai mal de todo.

No FT, Martin Wolf defendeu que os bancos centrais devem ter um papel importante na definição das remunerações dos banqueiros (www.ft.com/cms/s/0/73a891b4-c38d-11dc-b083-0000779fd2ac.html). Wolf considera legítimo intervir a este nível porque comportamentos irresponsáveis potenciam crises bancárias – 100 nos últimos 30 anos – que levam a perdas sociais enormes (a “nacionalização” do Northern Rock custará 3 mil euros a cada contribuinte inglês). A incerteza própria deste sector e a dificuldade em avaliar a qualidade das decisões tomadas concorrem, segundo o colunista, para conflitos de interesse entre várias partes. Wolf sugere, entre outras coisas, que as remunerações dos banqueiros dependam dos resultados num período mais vasto que o curto prazo (uma década), que torna a tomada de riscos excessivamente atractiva.

Num país cheio de inveja, ficou a ideia de uma invectiva contra os "ricos" e os "bem sucedidos". Curiosamente, vários gestores saudaram as preocupações partilhadas por Cavaco Silva.

Cada uma destas reflexões vale por si – e há diferenças nos discursos. A motivação essencial de Cavaco Silva é a "justiça social", a de Martin Wolf, a "estabilidade" no sector bancário. O primeiro apela à reflexão de altos quadros empresariais, o segundo propõe explicitamente uma maior regulação num dado sector. Sobressai, porém, um aspecto comum: a ideia de um conluio tácito em determinadas esferas, que sustenta e promove remunerações difíceis de justificar. Politicamente, importa ainda que a falta de “accountability” e de transparência em algumas elites empresariais e políticas semeia ventos de populismo. Só um tolo toma a ordem e a liberdade como adquiridas.

Nota: Vindo de António Vitorino, o eufemismo da “recomposição” governamental não surpreende. A nulidade do comentador é tanto mais grave quanto maiores os seus pergaminhos. Mas há um lado útil naquele "tempo de antena": mostrar como a lógica Menezista das "quotas" é embrutecedora.

quarta-feira, janeiro 23, 2008

O fumo dos outros (II)

Os requisitos “técnicos” para que se evite o dano causado pelo fumo prevalecem sobre eventuais motivações “políticas”.

As restrições da nova lei do tabaco não são propriamente pioneiras no mundo que nos é mais próximo. Onde se permite o fumo, exige-se ventilação suficiente, tal como se exige uma insonorização decente onde se permitem decibéis elevados. Porém, os estabelecimentos com mais de 100m2 não podem ter uma área de fumo superior a 30%. Dizem que as regras estritas sobre as áreas de fumo ostracizam os fumadores, o que é a mais pura das verdades. Contudo, isso resulta da “natureza” do próprio fumo (que se entranha antes sequer de o estranharmos): a eventual “vontade” de ostracizar A ou B é desnecessária para o efeito. Dito de outro modo, os requisitos “técnicos” para que se evite o dano causado pelo fumo prevalecem sobre eventuais motivações “políticas”.

Mas será legítimo limitar a liberdade de escolha dos proprietários de certos estabelecimentos? Aos anti-tabagistas mais agressivos nem ocorre esta questão. Eles querem poder jantar em qualquer sítio sem serem incomodados pelo fumo, ponto final. O dono do restaurante “está lá para servi-los” – é assim que muitos entendem a propriedade privada no nosso país. De modo análogo, muitos tabagistas preocupam-se com pouco mais do que com o seu interesse próprio. É verdade que falam na liberdade de escolha dos proprietários, mas, depois de décadas a falar do “fumo passivo” com pouco mais que puro desdém (e porque o “poder” estava com eles), só um ingénuo lhes reconhece autoridade na discussão.

Para os puristas do liberalismo, a proibição de fumar em padarias, supermercados ou hospitais privados será sempre um sinal de totalitarismo.

Há quem genuinamente ache que os proprietários deveriam ter total poder de decisão sobre tudo o que se passe no seu estabelecimento (incluindo impossibilitar a entrada a indivíduos de uma dada origem, dispensar o cumprimento de regras de higiene, etc). São os puristas do liberalismo. Para eles, a diferença entre certos estabelecimentos abertos ao público em geral – como cafés, pastelarias ou restaurantes – e a própria casa ou um clube privado é nula. A propriedade privada é tudo o que importa, pelo que mesmo a proibição de fumar em padarias, supermercados ou espaços partilhados de escolas ou hospitais privados será sempre um sinal gravíssimo de totalitarismo.

Já aqui escrevemos que a nova lei do tabaco enferma de um paternalismo perigoso (“O fumo dos outros”, 28-06-2006). É desejável que a liberdade de escolha dos proprietários aumente a médio prazo. Feitas as contas, se as actuais regras são a forma possível de questionar o domínio desproporcional que o fumo tem tido na nossa sociedade, o balanço – hoje – é menos negativo do que algumas almas rabugentas pretendem.

quarta-feira, janeiro 09, 2008

'Citizen' Cadilhe

A situação no BCP complicou-se de tal forma que já não se tratava de encontrar um “sucessor”, mas um “salvador”.

Recuemos 10 anos, para o BCP dos anos 90. Pensando numa hipotética crise futura de liderança, quem se vislumbraria como sucessor do banco? Muita gente, seguramente; nunca o líder do principal banco concorrente. Menos ainda se este, ainda que competente, tivesse sido nomeado pelo Governo. Não é preciso ler Weber, basta algum bom senso. Dirão alguns: a situação complicou-se de tal forma que já não se tratava de encontrar um “sucessor”, mas um “salvador” – e quem melhor do que o líder da concorrência para essa missão?

Accionistas menos ligados à história do BCP, como o BPI ou o turbo-especulador Berardo, terão pensado assim. A solução que encontraram, e o modo como a ela chegaram, resulta numa machadada na nossa frágil economia. Olha-se para o próprio umbigo, e no curto prazo. Típico das nossas elites. Quem, podendo, se ri de tudo isto é Salazar. A ideia de uma “alma lusa” carente do proteccionismo estatal e fadada para uma sociedade oligárquica ganha um novo fôlego.

Vítor Constâncio, depois de um certo adormecimento, dá um murro na mesa, varrendo várias personalidades por atacado (...), depois contesta o que todos interpretaram das suas palavras. Resultado: um desnorte que se lhe desconhecia.

Miguel Cadilhe avançou para a liderança do BCP. Fê-lo depois de comentar a actuação do Governador do Banco de Portugal neste caso. Pairavam suspeições sobre a sua pessoa, era necessário fazê-lo. Num primeiro momento, e depois de um certo adormecimento, Vítor Constâncio dá um murro na mesa, varrendo várias personalidades por atacado. Num segundo momento, respondendo às críticas entretanto surgidas, afirma que não tinha dito o que outros interpretaram. Resultado: um desnorte que se lhe desconhecia. De há um par de anos para cá observa-se distância da sua parte, não justificável com a discrição e a contenção que o seu cargo exige. Percebe-se um certo cansaço, algum enfado com o seu ‘métier’. O protagonismo que subitamente resolveu ter na crise do BCP talvez não seja a excepção a isso: talvez seja a consequência disso.

Faltam seis dias para a assembleia geral do BCP. Será que a CGD e a EDP se absterão? Haverá voto secreto? Paira uma terceira dúvida: caso Cadilhe vença, o que acontecerá aos ex-administradores da CGD da lista alternativa? É justo que uma quota importante – ainda que minoritária – da tripulação de um barco em apuros convide pessoas confortavelmente instaladas para tomarem o seu leme e depois estas acabem à deriva, porque a maioria da tripulação no final optou por outra chefia? Onde houve – se houve – imprudência? É isso a “ética de mercado”? No tempo de Salazar não era assim.

sábado, dezembro 22, 2007

Uma estrela em 2007

As estrelas raramente se escolhem. Aparecem, ou não; o seu brilho desperta-nos um sorriso, ou não; e é tudo.

É uma das leituras mais interessantes da nossa imprensa. Um católico que, entre estimulantes reflexões filosóficas, nos fala de liberdade, de tolerância, de esperança, de amor. Uma voz que, suspeito, não conquistará muitas simpatias no espaço à direita do centro político – um espaço difuso que, apesar de pontuais assomos liberais no discurso, na prática se mantém demasiado próximo da (velha) “direita sociológica” de que fala Jaime Nogueira Pinto. E isso porque não partilha certos “inimigos comuns” desse espectro político. Não se lhe vê a inclinação para disparar contra eles – ou contra quem quer que seja – da forma obsessiva e “a-racional” que caracteriza a lógica de facção, que torna a guerra de 1914-1918 uma imagem absurdamente recorrente para caracterizar a vida na nossa “polis”.

O colunista que leio fielmente e com gosto aos Sábados, no “DN”, defendeu, de forma inspirada – e inspiradora –, discreta mas assertiva, um “Sim” moderado no referendo à despenalização do aborto que teve lugar em Fevereiro deste ano. Coisa estranha para um católico? Estatisticamente, sem dúvida que sim. Lida a substância dos seus textos, a estranheza diminui. Percebe a tensão do dilema moral, não se duvida do humanismo da decisão, alheio a tricas políticas ou partidárias. Num tempo de radicalização dos discursos, de ênfase nauseante e quantas vezes irreflectida em determinados valores “absolutos”, duas mensagens de Isaiah Berlin sobressaem: a centralidade do conflito de valores numa sociedade civilizada e o valor da pluralidade. Coisas que – aceite que esteja a “naturalidade” desse conflito e a ideia de que não é necessário resolvê-lo, mas sim desejável aprender a viver com ele – convidam ao diálogo, que pressupõe uma boa dose de simpatia, vontade de conhecer o outro, as suas ideias, os seus valores, os seus preconceitos, as suas ambições, os seus medos. Uma vontade de construir pontes, de fazer do mundo um lugar mais próximo.

Estamos a três dias do Natal, mas não é por isso que destaco o padre e professor de filosofia Anselmo Borges. Nem o faço, de facto, por qualquer motivo fundamentalmente racional. As estrelas raramente se escolhem. Aparecem, ou não; o seu brilho desperta-nos um sorriso, ou não; e é tudo.

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Globalização e Estado Garantia

É ilegítimo, entre nós, defender um aumento do Estado Social apelando aos efeitos da globalização.

Pensemos num pequeno país desenvolvido, como a Holanda. De entre as oportunidades que a globalização traz, destaca-se a possibilidade de deslocalizar, directa ou indirectamente, actividades produtivas intensivas em trabalho pouco qualificado para países menos desenvolvidos – onde ele é tão mais barato que os custos adicionais (de transporte, institucionais e outros) são largamente compensados. Directamente, quando se deslocaliza parte material do processo produtivo, através de investimento directo estrangeiro; indirectamente, quando certos ‘inputs’ são importados. Na Holanda, o valor dos produtos intermédios “outsourcizados” de uma ou outra forma chega aos 50%. Na Áustria, aos 60%.

Qualquer destas deslocalizações produz três consequências no país mais desenvolvido: um aumento da sua riqueza média; um acréscimo das rendas auferidas pelos trabalhadores mais qualificados e donos do capital; uma subida do desemprego dos trabalhadores menos qualificados. Daqui resulta uma maior polarização numa sociedade globalmente mais rica. É isto que, segundo os economistas Keuschnigg e Ribi*, justifica um reforço do “Estado Social” em tais países, de modo a proteger os que ficam em situação de risco acrescido e a diminuir os efeitos do impacto assimétrico de custos e benefícios gerados pela maior abertura dos mercados.

Para quem valoriza a liberdade individual, a escolha teórica entre "Estado Garantia" e "Estado Providência" é simples. Como implementar o primeiro, é aquilo a que o PSD tem de responder quanto antes.

Portugal não é um desses países. Os números falam por si. Entre o primeiro trimestre de 2005 e o segundo trimestre de 2007, o desemprego total aumentou 10.3%, verificando-se os aumentos, entre os que têm “o ensino básico ou menos”, “o ensino secundário” e “o ensino superior”, de, respectivamente, 4.2%, 15.1% e 63.3%. Noutros países europeus, a dinâmica é diferente. É ilegítimo, entre nós, defender um aumento do Estado Social apelando aos efeitos da globalização.

Tem havido, na imprensa e na academia, uma discussão muito interessante sobre os méritos do “Estado Garantia” face ao “Estado Providência”. Para quem valoriza a liberdade individual, a escolha teórica é simples. E na prática, como se pode implementar o primeiro? É a isto que o PSD tem de responder quanto antes.

Nota: Compreende-se a ordem de fecho do comércio na zona onde decorreu a cimeira Europa-África; é triste que a obrigação de indemnizar não seja óbvia.

*“Outsourcing, Unemployment and Welfare Policy” (2007).

quarta-feira, novembro 28, 2007

Para quê tantos licenciados?

Os ingleses já perceberam que, por muito "tecnológico" que um país se torne, existirão sempre empregos que exigem baixas qualificações.

Um em cada três licenciados ingleses tem um emprego que não requer licenciatura. A sobre-qualificação em determinados desempregos resulta de uma insuficiente procura (ou um excesso de oferta) para essas qualificações. Num estudo da LSE, referido pelo Financial Times, critica-se a forma como os governos ingleses têm insistido, desde 1992, na ideia de que mais trabalhadores qualificados são sempre uma coisa boa, quando não essencial à "competição com outros países". Em Portugal vivemos uma situação de contornos idênticos.

Dois efeitos previsíveis deste tipo de discurso político são a frustração de muitos licenciados, que acabam por ter um retorno do investimento feito inferior ao esperado; e a afectação de outros recursos económicos de forma ineficiente – porque demasiado enviesada e alheia à realidade do país. Aquilo que os ingleses já perceberam é que, por muito "avançado" e "tecnológico" que um país se torne, existirão sempre empregos que exigem baixas ou médias qualificações (aliás, tão dignos quanto os outros, mas talvez os cérebros que desenharam a campanha publicitária das "novas oportunidades" discordem). A cegueira nacional faz-nos temer o pior.

Sendo legítimo que um governo influencie a dinâmica de crescimento de um país, a melhor forma de o fazer, hoje, passa por um reforço do papel de mediação entre procura e oferta.

Não está em causa a liberdade de cada um prosseguir os seus estudos ou de escolher um emprego para o qual tenha qualificações a mais. Já aqui defendemos que a educação superior é, antes de tudo, uma formação para a vida, não um mero instrumento de formação profissional. Sendo legítimo que um governo influencie a dinâmica de crescimento de um país, a melhor forma de o fazer, hoje, passa por um reforço do papel de mediação entre procura e oferta.

Quais os percursos profissionais, as oportunidades e os ganhos dos licenciados nas várias áreas do saber? Quais as necessidades de emprego dos empresários no futuro? A recolha de dados relativos a este mercado – como a obtenção de mais informações sobre os alunos que realizam exames no Secundário, que se espera já em 2008 – permite escolhas mais conscientes dos cidadãos. Pela sua situação privilegiada, faz sentido que o Estado promova tais iniciativas. Infelizmente, falamos de políticas relativamente discretas, incapazes de proporcionar momentos emocionantes no telejornal e que dificilmente satisfarão quem apadrinha o patrulhamento ao sal e às bolas de berlim por esse país fora.

quarta-feira, novembro 14, 2007

Morta à nascença

Um banco que sugere uma fusão “amigável” propondo condições à partida [...] mostra ter uma estratégia ambiciosa mas mal delineada.

Uma fusão entre BCP e BPI seria benéfica para os grandes clientes e prejudicial para os pequenos clientes. Se bem sucedida, também os accionistas dos dois bancos sairiam a ganhar. As grandes empresas beneficiariam no que respeita à internacionalização e aos serviços de banca de investimento. A perder ficariam os particulares e as PMEs, que, com pouco ou nenhum poder negocial junto de cada banco individualmente, sofreriam com o aumento de preços que a diminuição no número de ‘players’ sempre traz. Como referiu Luís Aguiar-Conraria, no "Público", com esta fusão os dois principais bancos ficariam com 60% de quota de mercado e os quatro maiores com 90% – percentagens que falam por si. Num país em que o investimento privado faz falta e as desigualdades se acentuam, estes efeitos são difíceis de ignorar. Contudo, a vontade dos dois bancos se juntarem não é ilegítima.

Algumas vezes o que desejamos coincide com o que prevemos. É o caso. A OPC está inquinada porque nasceu torta. Um banco que sugere uma fusão "amigável" propondo condições à partida, ainda para mais desrespeitadoras para os accionistas do banco visado, mostra ter uma estratégia ambiciosa mas mal delineada. Soma-se a isto o facto de as culturas dos dois bancos serem muito diferentes, o que torna a "mestiçagem" difícil. Em suma, ou se avançava para uma OPA – necessariamente "colonizadora" – com um bom prémio, ou se preparava convenientemente a fusão nos bastidores. Sinal de um certo desnorte foi, de resto, a discussão do assunto na praça pública.

Num país em que o investimento privado faz falta e as desigualdades se acentuam, os efeitos de uma maior concentração bancária são difíceis de ignorar.

O desmantelamento do BCP é uma hipótese improvável, não obstante a sua actual crise. Por muito que isso agrade aos jornalistas, a vida de um banco não é uma sucessão de 'sprints'. A hipótese de compra do BCP por parte de um banco estrangeiro é largamente teórica. Um banco rentável, de dimensão consolidada nos seus principais mercados e com uma cultura muito forte não é assim tão apetecível. Em todo o caso, sabemos que, nesse longínquo cenário, o número de ‘players’ se manteria e os serviços prestados aos clientes se alargariam. Lembro ainda que, num mercado muito regulamentado e onde dificilmente se descobrem problemas de soberania, não há razões sérias que sustentem a teoria dos "centros de decisão nacional". O futuro do BCP pode parecer sombrio a muitos, mas não se esgota no preto ou branco.

quarta-feira, outubro 31, 2007

Ética e rendas económicas

Valores exactos à parte, estranho seria que um bom administrador não ficasse com uma fatia significativa do excedente criado.

1. A ética empresarial é um terreno escorregadio. Na óptica do accionista, um negócio serve para criar valor, não para ser um poço de virtudes. Contudo, algumas regras – umas escritas, outras nem tanto – querem-se cumpridas. Jardim Gonçalves, ao pagar a dívida do seu filho, reconhece ter cometido um erro; ou então considera que 12 milhões de euros é um preço aceitável a pagar para abafar acusações injustas de falta de idoneidade na concessão desse empréstimo. No primeiro caso, não se tiram as consequências devidas desse “arrependimento”; no segundo caso, lida-se de forma duvidosa com o dinheiro dos accionistas. De qualquer modo, a imagem do banco fica de momento ferida.

2. Têm-se avolumado as críticas às remunerações dos administradores do BCP. Mesmo os que dirigem o BPI, agora interessados numa fusão, recentemente se insurgiram contra os seus prémios chorudos. Mistura-se muito esta questão com a da boa governança, o que é de algum modo compreensível - mas só até certo ponto. No século XIX, David Ricardo explicou que as “rendas económicas” geradas por um negócio são apropriadas pelos detentores dos factores de produção relativamente mais escassos. E dá o exemplo de dois terrenos de cultivo com diferente produtividade, explicando que o lucro “anormal” do terreno mais produtivo irá para o seu dono, que detém o recurso mais escasso – a terra de superior qualidade –, e não para quem nele labora, que ganhará o que receberia por trabalho idêntico num terreno alternativo.

Muitas qualidades da economia de mercado fundam-se na ideia de concorrência. A fusão Millennium-BPI não é desejável.

Numa empresa cotada a situação é análoga. Os accionistas são em larga medida substituíveis, pelo que devem ser remunerados sobretudo de modo a compensar suficientemente o risco que correm. Os trabalhadores que contribuem de forma marcada para o sucesso da empresa têm direito a receber parte dos lucros gerados. De entre estes, os que delineiam a estratégia do banco e o dirigem são os mais insubstituíveis. Valores exactos à parte, estranho seria que um bom administrador não ficasse com uma fatia significativa do excedente criado. A questão (importante) da desigualdade de rendimentos tem de ser pensada num contexto e numa escala bem diferentes.

Nota: A liberdade empresarial é um bem essencial mas não absoluto. Muitas qualidades da economia de mercado fundam-se na ideia de concorrência. A fusão Millennium-BPI não é desejável.

quarta-feira, outubro 17, 2007

Os encantos de Che

As consequências das acções de assassinos políticos têm de importar mais do que a sua estética e as suas intenções.

Costumo apreciar e bastantes vezes até concordar com o que escreve Ricardo Costa neste jornal. Qual não foi o meu espanto quando na sexta-feira passada o vejo testemunhar que tem e veste orgulhosamente uma camisola de Che Guevara. Diz o director da SIC Notícias que Che foi um “bandido e criminoso”, mas teve “a rebeldia e o romantismo como poucos têm”. Isso e outros ingredientes – “a época, o pioneirismo, a juventude” – “fazem dele um ícone único e fantástico”, e isso faz Ricardo Costa ter uma camisola do Che. Procurando apoiar a sua paixão com uma referência autorizada, o jornalista menciona o cartaz do Financial Times em que Branson é retratado por cima da cara de Che, oferecendo uma interpretação que, com o devido respeito, não tem qualquer sentido.

Não estamos perante um branqueamento. Antes estivéssemos. Quando ouvimos Fidel ou Chávez ou Jerónimo a tecer loas a Che, não ligamos demasiado. Sabemos que a cegueira da religião do comunismo ainda sobrevive. Contudo, quando alguém que vemos como um espírito liberal opta por estes relativismos, instala-se um certo desespero. Não pela pessoa em si, entenda-se, mas pelo que isso sugere sobre o que será o pensamento do português mediano.

Quando ouvimos Fidel ou Chávez ou Jerónimo a tecer loas a Che, não ligamos demasiado. Sabemos que a cegueira da religião do comunismo ainda sobrevive.

Quem negará que o 11/9 foi um acto “espectacular”, obra de uma “mente brilhante”, que fez de Bin Laden um “ícone” para muitas pessoas? Quem questionará que Hitler tinha uma grande “rebeldia” e um enorme “pioneirismo”? O que importa isso senão para reforçar a luta contra os seus seguidores?

Hitler e Che não são equiparáveis. Hitler aniquilou, de forma planeada, todos os que a sua “solução final” exigia aniquilar. Che abateu, de forma ‘ad-hoc’, todos os que se foram tornando um obstáculo à sua romântica utopia. O que fizeram tem graus obviamente incomparáveis. Mas eles partilham – e é essencial acentuar isso – o desprezo pela vida humana e a disponibilidade para recorrer a qualquer meio para fazer vingar o mundo totalitário com que sonhavam.

A ideia de que os mortos do comunismo não são um corolário desse ideal mas um resultado da “impureza” dos homens é inaceitável em 2007. As consequências das acções de assassinos políticos têm de importar mais do que a sua estética e as suas intenções. De sedutores e de boas intenções está o inferno cheio.

quarta-feira, outubro 03, 2007

“Abu Ghraib” dos pequeninos

A desproporção entre o número de praxantes e praxados revela que são poucos os que preferem fazer uso desse “direito adquirido”.

Uma academia de qualidade caracteriza-se, entre outras coisas, pela ausência de barreiras hierárquicas entre os seus membros, por um respeito mútuo universal e por um sentimento de pertença à comunidade universitária. A praxe é a negação de tudo isto: um exercício de poder marcado pelo desrespeito pelo outro, pela possibilidade de o ostracizar de modo arbitrário e onde tudo se resume a uma questão de hierarquias. Comparado com o ‘bullying’ na escola, a praxe tem as agravantes de ser uma prática institucionalizada, levada a cabo por e sobre adultos e em instituições onde o acesso não é imediato mas dependente do mérito.

Há quem defenda que a praxe é uma boa forma de integração e que muitos caloiros as consentem e se divertem com elas. Há ainda quem defenda que elas são um “investimento rentável” porque o caloiro sofre um custo no primeiro ano, mas tem depois vários anos de benefícios, se resolver exercer o seu direito à vingança sobre – e usando o jargão habitual destas festividades – as “fornalhas” seguintes de “carne fresca” e de “animais”. Vamos por partes.

A praxe é a (...) um exercício de poder marcado pelo desrespeito pelo outro, pela possibilidade de o ostracizar de modo arbitrário e onde tudo se resume a uma questão de hierarquias.

É inegável que, no contexto actual, algumas actividades das praxes contribuem para a integração de alguns alunos, e existirão seguramente intenções boas em muitos praxantes. Mas nada disso torna as praxes mais suportáveis. O direito a coagir e a humilhar o outro é simplesmente intolerável – e isso é suficiente para as excluir cabalmente. Quem defende que a praxe é um investimento com retorno apreciável esquece-se de que o “contrato” entre as partes raramente é feito de livre vontade. A desproporção entre o número de praxantes e praxados revela que são poucos os que preferem fazer uso desse “direito adquirido”.

Os reitores e demais dirigentes das nossas universidades são largamente complacentes com esta tradição. Incorrem no pecado mortal que Pacheco Pereira apontou aos “notáveis” do PSD: a “acedia” – a apatia em praticar a virtude, a indiferença face ao mal. Por que não tomam, concertadamente, uma posição que permita acabar com o ‘statu quo’ actual, de rituais de dominação e subjugação que lembram, com as devidas diferenças, o grotesco “Saló ou os 120 dias de Sodoma”? Há imensas formas não coercivas de integrar os alunos. Pactuar com essas pequenas amostras de “Abu Ghraib” é tudo o que uma universidade não pode ser.

quarta-feira, setembro 19, 2007

“Os melhores”

“Os melhores” em certas profissões não serão necessariamente os melhores políticos. Se calhar não serão sequer bons.

Ninguém pode negar que a nossa vida política está cheia de interesses mesquinhos e gente pequena. Não surpreende, por isso, que se ouça um pouco por todo o lado que é necessário atrair “os melhores” para a política. Repare-se na expressão escolhida: usa-se o superlativo “os melhores” em lugar do (mais modesto) comparativo “melhores do que”. Esta diferença não é despicienda e merece alguns comentários.
Primeiro, “os melhores” em certas profissões não serão necessariamente os melhores políticos. Se calhar não serão sequer bons. O exercício de um cargo político exige qualidades nem sempre relevantes para o sucesso profissional noutras áreas. (Basta pensar em casos recentes de excelentes profissionais que se revelaram políticos inaptos.) De entre essas qualidades está, por enquanto, um espírito de missão que não tem de existir noutras ocupações.

A retórica de trazer “os melhores” para a política acaba 
por funcionar como uma desculpa para não fazer nada. 
Fica o 'soundbyte'.

Segundo, a preocupação meritocrática patente neste tipo de discurso carece de um desconto, pois aparece hiperbolizada, por pelo menos duas motivações, possivelmente inconscientes: a procura de reconhecimento inter-pares (“os melhores apreciarão o que eu digo e procurarão que eu me junte a eles”) e o reforço da imagem positiva de si próprio (“se digo isto é porque sou ou estarei perto de ser um desses melhores”).
Terceiro, quando se fala em atrair “os melhores”, está-se muitas vezes a sugerir, em simultâneo, (1) que o que temos hoje não serve para nada e (2) que seria bom que surgisse alguém especialmente preparado (3) que conseguisse mudar o estado das coisas. Ou seja, uma tríade de derrotismo, culto sebastianista do homem providencial e preferência por grandes rupturas em vez de pequenas reformas.
Não me interpretem mal. Também quero viver num país melhor, liderado por pessoas mais capazes. Acredito que as elites têm um papel e uma responsabilidade fundamentais nessa evolução. Mas observo que a retórica de trazer “os melhores” para a política acaba por funcionar como uma desculpa para não fazer nada. Fica o ‘soundbyte’, transformado em “linha orientadora” ou “objectivo a longo prazo” de quem o usa. As mudanças fazem-se passo a passo, com realismo. Precisamos de pessoas melhores na política, ponto. Os melhores serão sempre bem-vindos se vierem por bem.

quarta-feira, setembro 05, 2007

Novas oportunidades?

Com um empréstimo na mão, ou no horizonte, torna-se mais fácil optar pela universidade academicamente preferida.

Tudo o resto constante – propinas, acção social, bolsas de mérito –, a ideia de o Estado se constituir como garante de empréstimos bancários a estudantes universitários (até ao montante de 25 mil euros) alarga as suas possibilidades de escolha, que não se resumem à escolha dual entre seguir ou não os estudos. Com um empréstimo na mão, ou no horizonte, torna-se mais fácil optar pela universidade academicamente preferida (ainda que implique custos de subsistência mais elevados), comprar livros em vez de tirar fotocópias ou participar no programa Erasmus. Os críticos que sublinham a crescente desresponsabilização do Estado no financiamento do ensino superior têm, no mínimo, o demérito de não valorizar suficientemente a diferença que um empréstimo pode fazer para cada um dos seus beneficiários.

Não nascemos todos iguais. Cada um tem os seus talentos, aptidões e gostos. A escolha de prosseguir estudos universitários é uma decisão de valorização pessoal complexa.”Democratizar” o ensino superior significa que um aluno que tenha capacidades académicas suficientes não pode ficar de fora por motivos financeiros. Não significa que “qualquer” aluno tenha direito a esse grau de ensino. Veja-se o que se passou nas recentes décadas, com a proliferação de cursos e de universidades privadas de qualidade duvidosa. Qualquer curso que não assegure a aquisição de conhecimentos nem seja capaz de sinalizar a qualidade intrínseca dos alunos que o frequentam é um desperdício. A excelência paga-se. Desejavelmente, também se premeia. Propinas mais altas, pagas por quem pode, a par de uma maior acção social (recebida por 20% dos alunos em Portugal, 85% em Inglaterra) e de bolsas de mérito, são parte do longo caminho a percorrer.

”Democratizar” o ensino superior significa que um aluno que tenha capacidades académicas suficientes não pode ficar de fora por motivos financeiros.

Nada disto nos faz esquecer que a luta por melhores “oportunidades”, de que tanto se fala hoje, passa muito pelo combate, a montante, à iliteracia (tarefa para uma ou duas gerações) e ao abandono escolar. Há cerca de um ano, Cavaco Silva apadrinhou a iniciativa “Empresários Pela Inclusão Social”, encabeçada por João Rendeiro, que se propunha ajudar a atacar o segundo problema. Desde então, pouco ou nada se sabe sobre o que tem (ou não) sido feito e o seu sítio (www.eis.pt) ainda está em construção. É pena, porque quanto menor a notoriedade, mais ciclópica esta missão se torna.

quarta-feira, agosto 22, 2007

Credibilidade

Um passado de cumprimento de uma determinada estratégia é uma “âncora” que condiciona as escolhas do oponente.

Ter credibilidade é essencial em situações estratégicas. Na proposta de um preço numa OPA, na promessa de não aumentar os impostos ou na ameaça de cortar a mesada, quanto mais o outro acreditar no cumprimento do que é anunciado, maior o poder negocial do próprio e, com isso, maiores os seus ganhos esperados. Destaco cinco formas de aumentar a credibilidade.

1) Reputação. Um passado de cumprimento de uma determinada estratégia é uma “âncora” que condiciona as escolhas do oponente. Um governo que nunca tenha negociado com raptores enfrenta uma probabilidade de raptos futuros mais baixa.

2) Contratualização. Um contrato cria um custo de incumprimento do que nele constar, aumentando assim a probabilidade de vir a ser honrado. Contudo, se, ao longo do tempo, os custos em cumpri-lo vierem a ultrapassar os seus benefícios, ele será quebrado – sendo um dos custos relevantes o abalo na reputação de quem o quebra. Por exemplo: casamento (contrato formal); programa de governo (contrato informal).

Se desconfia que vai fraquejar na altura de negociar, 
por que não pagar a alguém para o fazer por si?

3) “Queimar pontes atrás de si”. Ter menos opções pode ser vantajoso em situações estratégicas, e não apenas quando haja problemas de auto-controlo. A impossibilidade de retirada numa luta – como aconteceu quando Cortéz mandou queimar todos os seus barcos depois de desembarcar no México – garante que cada um lutará com ânimo acrescido e que o adversário, reconhecendo o desespero do atacante, considerará a opção de fuga com melhores olhos.

4) Delegação. Se desconfia que vai fraquejar na altura de negociar, por que não pagar a alguém para o fazer por si?

5) Deixar o resultado fora do controlo humano. Melhor do que delegar num humano, possuidor de vontade própria, é fazer depender a escolha de uma máquina. No filme “dr. Strangelove”, os russos constroem a “Doomsday machine”, que desencadeará, em caso de ataque nuclear dos americanos, um contra-ataque de “proporções nunca vistas”. Como ninguém pode desactivá-la ou corrompê-la, o contra-ataque é absolutamente credível, tornando-se – assumindo que o oponente está a par disso – num dissuasor perfeito.

Para desenvolver este e outros temas de estratégia, recomendo vivamente o livro “Thinking Strategically”, de Dixit e Nalebuff.

quarta-feira, agosto 08, 2007

Repensar o PEC

A existência de entidades independentes com certos poderes pode ser positiva para uma democracia liberal.

Uma notícia desagradável para cada um, porém boa para todos: o preço da água deverá subir entre 25% a 30% até 2010, por pressão da Comissão Europeia. Como outras medidas impopulares mas necessárias, esta subida de preço recorda-nos de como a existência de entidades independentes com certos poderes pode ser positiva para uma democracia liberal. É neste quadro que devemos reflectir sobre o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). Os “números” do PEC continuam a ser motivo de demagogias incompreensíveis.

Diversos políticos e comentadores – economistas, muitos deles – falam desses números com o desdém de quem não lhes reconhece qualquer lógica. E, no entanto, ela é simples: uma gestão sustentável das finanças públicas requer solvabilidade a longo prazo; um défice temporário (”fluxo”) pode ser financiado através da emissão de dívida pública (‘stock’); quando esta é igual a 60% do PIB e a taxa de juro relevante se fixa nos 5%, a restrição orçamental de longo prazo impõe que o défice orçamental não exceda os 3% do PIB.

Os “números” do PEC continuam a ser motivo de demagogias incompreensíveis. Diversos políticos e comentadores – economistas, muitos deles – falam desses números com o desdém de quem não lhes reconhece qualquer lógica.

Numa Europa a envelhecer e com um Estado social generoso, acabar com o PEC – como defenderam, nestas páginas e em tons diferentes, Domingos Amaral e Ricardo Reis – parece-me muito arriscado. Inerente à moeda única é a premissa forte de que uma série de variáveis macroeconómicas não derrapará nos países que a adoptaram. Com regras menos apertadas e um número crescente de países-membros, a instabilidade espreitará. Acresce que o BCE tem ganho credibilidade, mas não tem a autoridade de um “Papa” (recorde-se Greenspan), o que implica ainda que a reorientação da sua política monetária – com maior peso para o crescimento económico – não possa ser vista como uma ruptura.

Depois dos incumprimentos da França e da Alemanha, a revisão do procedimento relativo aos défices excessivos adquire uma importância central na reforma do PEC, sendo essencial distinguir o impacto de políticas governativas do de outras variáveis económicas e enquadrar as reformas estruturais. Esta flexibilização exige duas contrapartidas: situar em 1%-2% o objectivo para o défice em períodos de crescimento económico e atribuir maior independência aos responsáveis por fazer cumprir o acordo revisto. Optar pelo facilitismo, cedendo às pressões eleitorais de cada país, poderá ser fatal para o projecto europeu.

quarta-feira, julho 25, 2007

Plataforma liberal

Propor o mesmo que José Sócrates, ou algo diferente de forma errática, torna muito fácil optar pelo familiar e conhecido, adiando a mudança.

Esqueça-se 2009: a crise da direita não se resolve em dois anos. Em tempo de reflexão profunda, a direita tem de perceber que precisa de competência e de realismo, como escreveu Pulido Valente, e ainda de uma diferenciação credível. Propor o mesmo que José Sócrates, ou algo diferente de forma errática, torna muito fácil optar pelo familiar e conhecido, adiando a mudança. PSD e CDS/PP têm andado entretidos a discutir nomes. Quando falam de ideias é para acusar o governo de os estar a ultrapassar pela direita. Como escrevia Henrique Raposo, no “atlantico-online.net/blogue”, a direita parlamentar ficaria melhor como segundo e terceiro anéis da bancada socialista.

Infelizmente, é cada vez menos crível, depois de anos de letargia, confusão e abstinência ideológica, que alguma renovação no espaço político não socialista possa vir desses dois partidos. A esta constatação segue-se outra: nos últimos anos têm florescido, entre colóquios, blogues, publicações e movimentos de cidadania, diversas ideias de inspiração liberal, entre as quais o reformista e moderado “liberalismo social” – que não pode ser confundido com o “socialismo liberal” de Sócrates. Embora possam coincidir numa ou outra solução concreta, as visões sobre o papel do Estado, dos indivíduos e da comunidade são substancialmente diferentes.

É cada vez menos crível, depois de anos de letargia, confusão e abstinência ideológica, que alguma renovação no espaço político não socialista possa vir do PSD ou do CDS/PP.

O liberal social aceita “restrições” à sua liberdade individual (via pagamento de impostos) para promover uma maior igualdade de oportunidades na educação e alguma contratualização na saúde e nas pensões de reforma, mas o seu “objectivo” é a defesa da mais ampla liberdade de escolha. Esta prioritização faz toda a diferença. Contrariamente ao socialista liberal, que vê o Estado como solução primeira e evidente para tudo, o liberal social apenas o aceita como uma solução de recurso para os casos em que a comunidade não é capaz de, sozinha e espontaneamente, responder a certos desígnios.

Dois projectos que reflectem estas ideias (e às quais não tenho qualquer ligação) são o Compromisso Portugal (compromissoportugal.pt) e o Movimento Liberal Social (liberal-social.org). Diferenças à parte, comungam entre si uma visão realista da política. Se estas e outras iniciativas liberais, como a revista Atlântico, não puderem voar mais alto, é Portugal e cada um de nós quem fica mais comprometido.

quarta-feira, julho 11, 2007

O direito à indiferença

Numa sociedade civilizada, a piada e o insulto homofóbicos têm, da parte de qualquer cidadão, uma oposição firme e construtiva.

Numa sociedade liberal pujante, cada um tem bem presentes os seus direitos e responsabilidades. Estas não têm de passar pela lei escrita e têm duas dimensões distintas: a obrigação de A perante B – decorrente do direito de B sobre A – e, um nível acima, a obrigação de preservar os valores que sustentam essa sociedade, como a coesão e a pluralidade. Duas obrigações que todos entendem são o apoio aos mais frágeis e o respeito por modos de vida diversos. Nos transportes públicos não será necessário reservar lugares para grávidas ou idosos, porque ceder o lugar é um dever reconhecido por todos. A discriminação pública de outro indivíduo – que pressupõe um juízo de desvalor – não é aceitável nessa sociedade. É por isso que não são toleráveis as manifestações públicas de racismo ou de homofobia. As primeiras acarretariam, no nosso país, e hoje em dia, uma sanção social, o que não aconteceria necessariamente com as segundas, aceites por muitos ou mesmo incentivadas.

Em Inglaterra, como noutros países de tradição mais liberal, a questão da homofobia já não se debate. Impera um princípio simples: o direito à indiferença no espaço público. Não basta defender o direito de cada um à sua vida privada, porque a vida em sociedade comporta um lado social fundamental, onde se inclui, entre outros, a manifestação pública de afectos. O direito a não ser incomodado é, neste plano, o direito de não ser discriminado por fazer aquilo que é feito em contextos relacionais mais comuns. Numa sociedade civilizada, a piada e o insulto homofóbicos têm, da parte de qualquer cidadão, uma oposição firme e construtiva.

Não deve valer de muito lembrar [...] que a defesa de uma causa justa só pode ser feita independentemente dos interesses do próprio. Mas não custa tentar.

Não é isso que se vê em grande parte dos liberais de direita portugueses. Percebe-se porquê. Muitos deles são moralmente conservadores, convivendo mal com a ideia de um espaço público onde a sua moral particular não seja seguida por todos. Depois, há os “boatos” e as “rotulagens”. Não deve valer de muito lembrar a transversalidade das lutas anti-esclavagistas e pró igualdade de direitos entre homens e mulheres. Ou que a defesa de uma causa justa só pode ser feita independentemente dos interesses do próprio. Mas não custa tentar. Porque o silêncio perante a homofobia pública – esclarecedoramente exibida aquando do caso das duas adolescentes de Gaia –, resume-se nisto: quem se cala, consente.

quarta-feira, junho 27, 2007

Racionalidade encarcerada

Que sentido pode ter a existência de um estabelecimento prisional no centro de uma grande cidade como Lisboa?


Como o aeroporto da Portela, também o Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL) levanta questões sobre a forma como se pensam e organizam as cidades. Deve ele ser mantido, ou deslocalizado? E, independentemente disso, como geri-lo?

Sendo, na prática, impossível desligar os problemas da localização e da racionalização das prisões, é o último aspecto o que mais problemas levanta em termos de debate político. Sugerir investimentos nesta área garante uma condenação unânime. A esquerda, candidamente, lembrará a urgência em melhorar as condições sociais das classes mais desfavorecidas e apostar na educação, para que diminua o número de crimes e a necessidade de tais gastos. A direita, incomodada, frisará a injustiça de dispender recursos escassos com quem se desviou da norma, mais ainda se houver uma criança em lista de espera para ser operada ou pensões de reforma chocantes. A demagogia é, neste campo, demasiado tentadora.

Que sentido pode ter a existência de um estabelecimento prisional no centro de uma grande cidade como Lisboa? Estar sem liberdade a um ou vinte quilómetros do Marquês de Pombal não pode ser muito diferente. Justificar a centralidade do EPL com o seu suposto carácter pedagógico é ridículo. O custo de oportunidade da área ocupada faz, então, toda a diferença – tornando a actual escolha pouco recomendável. Como vêem os candidatos à Câmara de Lisboa o futuro do EPL?

Há cerca de um ano, o Governo avançou com uma proposta de racionalização das prisões – nomeadamente, acabando com 22 delas –, o que é de saudar. Em traços gerais, qualquer nova prisão, para além de estar fora dos centros urbanos e de dever ser equacionada numa lógica nacional, quer-se grande, para aproveitar economias de escala, mas não demasiado grande, por questões de segurança e para preservar alguma proximidade geográfica entre o recluso e os seus familiares (impossível se o número total de prisões se tornar demasiado baixo). A par da separação de alas – ou mesmo de prisões – com base em doenças infecto-contagiosas e na toxicodependência, a aposta numa maior diferenciação das regalias a que os reclusos poderão ter acesso, consoante o seu comportamento, valorizará – praticando-o – o princípio da reciprocidade, ingrediente essencial da vida em comunidade.

terça-feira, maio 29, 2007

Contas individuais

Não percebo a justiça de ter de pagar, na mesma proporção, consequências previsíveis das escolhas livres de cada um.

Um princípio geral: se A é mais responsável por X do que B, A deve ser mais responsabilizável do que B pelo que decorre de X. No caso da saúde, e porque a existência digna de cada um de nós depende muito dela, faz todo o sentido juntar a este princípio uma cláusula contratual de partilha de risco e de alguma entre-ajuda, nomeadamente em caso de catástrofe – para qualquer um – e, de forma geral, aos mais desprotegidos. O que não faz sentido é perder de vista o princípio enunciado.

Não me interessa o estilo de vida que cada um leva. É-me indiferente que o meu vizinho coma batatas fritas todos os dias, tenha auriculares nos ouvidos o tempo todo ou beba meia garrafa de ‘whisky’ antes de se deitar. Só não percebo a justiça de ter de pagar, na mesma proporção, algumas previsíveis consequências dessas escolhas livres. O princípio do consumidor-pagador deve ser a base de partida – embora, nesta área, nunca o fim. O que é incrível é que subsista, aqui e ali, a defesa demagógica da saúde “tendencialmente gratuita”, como se ela não fosse paga por todos.

Os custos decorrentes de uma deficiência genética e de certos cancros devem ser comparticipados a 100%. O mesmo não acontece com os problemas auditivos da geração 'iPod'.

Uma alternativa residiria em evoluir para um sistema misto, de contas individualizadas complementadas por um fundo comum, financiado por descontos obrigatórios. A conta receberia uma parcela do salário e ficaria cativa. Poderia ser usada para adquirir seguros privados, mas não para qualquer outra despesa ao longo da vida. A utilização do serviço público de saúde implicaria um débito nessa conta, que poderia ter um saldo temporariamente negativo e receber transferências privadas exteriores (ex: instituições de solidariedade). Ninguém seria marginalizado no acesso a cuidados básicos.

Um sistema como este não se implementa num dia, mas a sua rejeição liminar por motivos ideológicos exige que se recorde o quão urgente é repensar o actual modelo do SNS, em face da evolução dos custos unitários de certos tratamentos e da demografia. Não há nada de “neo-liberal radical” nesta proposta. Apenas se considera que não é justo que cada um pague sempre tudo por igual. Os custos decorrentes de uma deficiência genética, de certos cancros e de outras doenças relativamente aleatórias devem ser comparticipados em 100%. O mesmo não acontece com a arteriosclerose ou os problemas auditivos da geração ‘iPod’. Um pouco mais de responsabilidade individual só faz bem.

quarta-feira, maio 16, 2007

Mediocridade e policiamento

Mediocridade e policiamentoPode invocar-se a existência do noticiário da noite do outro canal público para justificar a mediocridade do Telejornal? É evidente que não.

1. Mais por dever do que por prazer, vejo uma telenovela todos os dias: o Telejornal da RTP. A forma como tem sido noticiado o desaparecimento de uma criança é apenas mais um sinal de uma “tabloidização” do principal noticiário do canal público que vem de longe. Um crime passional – que “ninguém previa” - ou uma lesão – “vital” – de um jogador de futebol relevam mais que a actualidade política, incluindo momentos institucionais, como um discurso do Presidente da República. Pode invocar-se a existência do noticiário da noite do outro canal público para justificar a mediocridade do Telejornal? É evidente que não. O mínimo de competência e brio profissional que se espera de um serviço público de televisão é suficiente para que qualquer seu noticiário seja sóbrio, curto e bem alinhado.

2. Por telefonemas, auto-censura ou um estranho sentido de missão, o actual Governo tem sido tratado como outros nunca foram. Incêndios, greves e demais inconveniências aparecem esbatidas. O caso “UnIgate” esteve mesmo ausente, por vários dias, do Telejornal porque “os jornalistas não tinham material próprio sobre o tema”. Disse-o o Director de Informação da RTP, num programa apresentado por um senhor afável que, não obstante limitar-se a “dar voz” a telespectadores e jornalistas, se apelida de “provedor”. Um epíteto tranquilizador, sem dúvida.

Por telefonemas, auto-censura ou um estranho sentido de missão, o actual Governo tem sido tratado como outros nunca foram. Incêndios, greves e demais inconveniências aparecem esbatidas.

Em cima do bolo, duas cerejas. Pina Moura, que acha natural e até desejável que as televisões tenham linhas editoriais claras, não parecendo compreender que um jornal não é, neste ponto, comparável a um canal de televisão. (Mas, em abono da verdade, diga-se que o próprio admite não saber muito de ‘media’, tendo sido escolhido, explica, pelos contactos que tem na alta finança e na classe política). E a ERC, que, entre outros inaceitáveis ímpetos regulatórios, se propõe cronometrar o tempo dado a diferentes forças políticas em noticiários e programas de debate. Será que, ao menos, os seus ilustres membros dão valor à “relevância” da informação e ao “mérito” da opinião?

Quem defende algum serviço público de televisão de qualidade e se opõe à regulação centralista dos ‘media’ fica desconsolado perante tudo isto. Em nome da liberdade, é essencial lutar contra estas e outras formas de anestesia, antes que a asfixia seja total.

quarta-feira, maio 02, 2007

Taxa plana, taxa óptima

A ideia da taxa plana só pode vingar se enquadrada num bom programa político, nunca como ‘soundbyte’ oportunista.

Uma das vantagens da “taxa plana” de imposto sobre o rendimento pessoal é a existência de uma única taxa marginal, que torna o processo de cálculo e pagamento de impostos consideravelmente mais simples para todos. Dependendo do seu valor, e da forma como a economia reage a uma dada mudança fiscal, as receitas arrecadadas podem subir ou descer. Se o Estado deve fazer uma dieta do tipo A ou B é, portanto, uma questão distinta.

São duas as críticas àquela que é mais conhecida por ‘flat rate’: (1) que não permite progressividade fiscal e (2) que prejudica os mais pobres. Duas ideias bastante insustentadas. Para que exista progressividade fiscal, com a taxa plana, é condição necessária e suficiente que algum rendimento inicial esteja isento de imposto. Por exemplo, uma taxa marginal de 25%, com isenção fiscal sobre os primeiros 400 euros mensais, faz com que a taxa média de imposto para quem aufere 500, 1.000, 2.000 e 10.000 euros mensais seja, respectivamente, de 5%, 15%, 20% e 24%. Para que os mais pobres não fiquem pior, basta que a taxa adoptada não seja demasiado elevada – e tendo em conta o valor de rendimentos isentos. Se é consensual que são os ricos quem mais facilmente foge aos impostos, talvez conviesse lembrar a alguma esquerda que tantos anos de taxas de IRS progressivas não pareceram ter grande efeito sobre a elevada variância na nossa distribuição de rendimentos. Entre a lei e a realidade vai, entre outras coisas, a distância importante de as pessoas poderem tomar escolhas livres, reagindo a incentivos.

Talvez conviesse lembrar a alguma esquerda que tantos anos de taxas de IRS progressivas não pareceram ter grande efeito sobre a elevada variância na nossa distribuição de rendimentos.

Desde os anos 70 que vários estudos apontam para que um esquema linear de imposto seja a forma óptima de alcançar certos objectivos de eficiência e de equidade. Acabando com as taxas marginais muito altas, incentiva-se o trabalho e desincentivam-se a evasão e a fuga fiscais. Muitas preocupações com a equidade podem ser mais eficazmente alcançáveis por outras vias. Não deve ser tabu, por exemplo, reflectir, no âmbito da UE, sobre a reposição de uma taxa de IVA superior para bens de luxo e de “estatuto”.

Qualquer política fiscal deve ser perspectivada a 15-20 anos, não a dois – como já escreveu o director deste jornal. Mais: a ideia da taxa plana só pode vingar se enquadrada num bom programa político, nunca como ‘soundbyte’ oportunista. Por agora uma miragem, portanto.

quarta-feira, abril 18, 2007

Arquivar o inconveniente

Quando se convive mal com a crítica, perde-se em autoridade o que se conquista de autoritarismo.


Pensemos, em abstracto, no cenário de um primeiro-ministro envolvido num caso de favorecimento político. Provada a obtenção de favor, seria sustentável não haver lugar a uma demissão? Em abstracto, não. No concreto, a resposta é menos simples.

Com o caso da UnI aprendeu-se muita coisa. Primeiro, que ainda há quem atire areia para os olhos alheios, sugerindo que a presente suspeita de favorecimento político – coisa evidentemente pública – está no mesmo nível de comentários, politicamente inaceitáveis, sobre a vida privada de cada um (se a pessoa fuma, se vai à missa, se dorme com A ou B, se sofre de insónias, etc.). Segundo, que é possível alguém afirmar nada dever, nada temer e, ainda assim, tremer, e muito. Terceiro, que o primeiro-ministro terá “pressionado”, sem conseguir “condicionar”, vários jornalistas, num uso pouco eficaz dos recursos do país. Quarto, que quando se convive mal com a crítica, perde-se em autoridade o que se conquista de autoritarismo. Quinto, que só um político muito 'by the book' poderia declarar não se ter preparado especialmente para uma entrevista importante – e sem que ninguém se risse no estúdio.

Só um político muito ‘by the book’ poderia declarar não se ter preparado especialmente para uma entrevista importante – e sem que ninguém se risse no estúdio.

Valerá a pena perder mais tempo com este assunto? Apesar de se tratar de um caso potencialmente bastante sério, é provável que não – mas apenas porque podemos hoje dizer que já aconteceu tudo o que de relevante poderia ter acontecido. Sendo virtualmente impossível provar certo tipo de acusações, só podemos sublinhar a presunção de inocência e a inutilidade de avançar com investigações mais “aprofundadas” e “independentes”. Em termos políticos, e tendo em conta o ponto anterior, releva ainda a nota tão previsível quanto irritantemente tecnocrática que o Presidente da República deixou sobre o caso: “há coisas bem mais importantes para o desenvolvimento económico de Portugal”.

No fundo, que interessa investigar se o actual primeiro-ministro beneficiou de favores políticos, num país onde isso é relativamente aceite, e depois das fugas de Guterres e Barroso, do 'show' de Lopes, de um défice que chegou aos 7%, e a poucos meses da Presidência da UE? Interessará, ma non troppo. Os “custos de contexto” serão suficientemente grandes para que o caso deva morrer aqui. Quando convém a muitos, é assim: arquiva-se.

terça-feira, abril 03, 2007

O admirável mundo da Ota

Os decisores políticos sairão sempre beneficiados com uma obra desta dimensão [...] não é seguro que sobre ela venham a prestar contas.


Quando um projecto é faraónico, o cidadão desconfia. Estima-se que a Ota custará – sem contar com as inevitáveis derrapagens – 3,1 mil milhões de euros. Mário Lino, na boa tradição do intervencionismo estatista, afirma que “as obras públicas são essenciais à economia” e que a Ota trará um “novo fôlego ao sector da construção”. Diz ainda tratar-se de um “compromisso pessoal” – uma declaração infeliz e reveladora.

A possibilidade de ver surgir mais um “elefante branco” obriga-nos a lembrar duas coisas. Primeiro, os decisores políticos sairão sempre beneficiados com uma obra desta dimensão, sendo que não é seguro que sobre ela venham a prestar contas. Os benefícios têm lugar no curto prazo, a avaliação global só é possível a médio prazo. Não é por acaso que ‘accountability’ é dificil de aportuguesar (e recorde-se como a governação, em Portugal, parece ser cada vez mais um mero trampolim para voos mais desejados). Segundo, existe uma incerteza grande quanto aos benefícios do projecto. Quer a procura da gratificação imediata, quer o excesso de optimismo, incentivam o decisor político a ser favorável a projectos que deveriam ser chumbados.

Grave é que, no meio de tanta discussão técnica, não se dê a devida importância ao custo da obra – pago pelas gerações actuais e futuras.

Não bastavam estas perversões, acresce ainda a pressão dos engenheiros deslumbrados com a ideia de tão “grande obra”. São precisas 235 mil estacas? “Isso não é nenhum papão para a engenharia portuguesa”, advertem. Como o major Valentão do Contra-Informação, eles não têm medo de nada, estacas incluídas: só precisam de saber “quantas são”. Grave é que, no meio de tanta discussão técnica, não se dê a devida importância ao custo da obra – pago pelas gerações actuais e futuras.

Numa estratégia inteligente, o governo tem feito por transmitir a ideia de a decisão ser definitiva, procurando desanimar os opositores, enquanto pisca o olho aos beneficiários do projecto, desde logo a banca, como notavelmente explica João Caetano Dias (http://www.causaliberal.net/documentosJCD/falaciasota.htm). Mas em política nada é irreversível.

A alternativa mais sensata – a que respeitaria os contribuintes – seria apostar num aeroporto ‘low cost’, complementar da Portela, que satisfaria e geraria tráfego acrescido, proveniente de um novo tipo de turismo. Uma opção responsável, inevitavelmente incapaz de satisfazer o apetite estatista pelas grandes obras.

quarta-feira, março 21, 2007

Alternativas liberais

Há uma segunda alternativa liberal para Portugal: o aparecimento de um “movimento político aberto e reformador”.

Uma política liberal passa, entre outras coisas, pela defesa do “cheque-ensino”, de uma política de saúde mais baseada em contas individualizadas, complementadas por um seguro comum, e de certos direitos para os casais homossexuais. Maior liberdade económica, sem excessos neo-liberais, mas sem medo de reformar; e maior liberdade na esfera dos costumes, sem exageros fracturantes, mas sem tremores de sacristia – é o que exigem a defesa da liberdade individual e da dignidade humana.

As novidades programáticas que Paulo Portas apresentou na entrevista (mediocremente) conduzida por Judite de Sousa resumiram-se a brevíssimas alusões ao ambiente e à cultura. De um novo discurso, assumidamente liberal, zero. Mas a verdade é que, com ou sem este ou outro Portas, o CDS-PP nunca poderá ser uma alternativa propriamente liberal e eficaz. Na política, conta a “percepção”. E a “marca” CDS-PP tem duas marcas inapagáveis: a defesa intermitente e habitualmente oportunista de políticas liberais na economia; a defesa intransigente e legitimamente beatífica de políticas iliberais nos costumes. Um CDS-PP liberal, só em sonhos.

Com ou sem este ou outro Portas, o CDS-PP nunca será uma alternativa propriamente liberal e eficaz.

Poderá o PSD - o partido onde cabe quase tudo - constituir uma alternativa liberal? Talvez. Mas sejamos pragmáticos. Santana Lopes não é alternativa para nada. Logo, também não o serão Sarmento e Arnaut. Jardim não tem lugar num partido que se dê ao respeito. Menezes foi o “génio” que viu em Sócrates o grande derrotado de 11/2. Rio gera demasiada animosidade. Ferreira Leite é excelente como tesoureira. Borges é um equívoco. A Marcelo ninguém acudirá se gritar “Fogo!”.

Sem apertar muito as malhas da rede, sobra um nome apenas: Paula Teixeira da Cruz. Com os defeitos que conhecemos, mais os que não conhecemos, fica, das suas intervenções, a ideia de que com ela se poderia construir um novo PSD - menos estatizante, mais liberal, mais tolerante. A incerteza quanto às suas ideias e capacidades permite dizer isto e só isto: merece o benefício da dúvida.

Há uma segunda alternativa liberal para Portugal: o aparecimento de um “movimento político aberto e reformador”, como sugeriu Rui Ramos (Público, 07-03-07). Haverá espaço? Vontade? Meios? Não há melhor resposta que o remate do historiador: “não é só porque uma coisa é necessária que tem de aparecer.”

quarta-feira, março 07, 2007

Da selecção amostral

O “tipo” de leitor que, em geral, não gosta de responder a inquéritos dificilmente responderá a um que seja.


Imagine que um jornal pede aos seus leitores que respondam, por correio normal, a esta pergunta: gosta de responder a inquéritos publicados em jornais? Assumindo que não há electrodomésticos em sorteio, o que espera o (meu) leitor que aconteça? Seguramente, que todas as respostas sejam afirmativas: o “tipo” de leitor que, em geral, não gosta de responder a inquéritos dificilmente responderá a um que seja.

É o exemplo clássico de “selecção amostral” – o problema de obter uma amostra não representativa da população em estudo. Outro exemplo: os inquéritos de Kinsey sobre sexualidade. Como não suspeitar que, nos indivíduos voluntariamente entrevistados, exista uma sobrerepresentação de libertinos e exibicionistas e uma subrepresentação de conservadores e pudicos? A causa do problema reside na diferença de incentivos que distintos “tipos” de indivíduos têm para participar no mecanismo de extracção de informação proposto.

Os resultados do programa “Os Grandes Portugueses” 
nunca serão estatisticamente representativos.

Os resultados do programa “Os Grandes Portugueses” não são necessariamente representativos das preferências dos portugueses porque (I) pode haver voto estratégico dos que votam – como vimos há 15 dias; (II) os que decidem votar podem não constituir uma amostra representativa da população. Não custa a entender que algumas franjas extremistas – e uso a palavra num sentido “descritivo”, e não de “crítica” – sintam uma pulsão maior que as franjas moderadas para empurrar os seus ídolos para uma liderança inicial, mais ainda quando se antecipa que a disputa final do primeiro lugar acontecerá entre os dois candidatos que consigam essa vantagem inicial. Acresce que a capacidade de mobilização de organizações extremistas é, também ela, desproporcional. Por tudo isto, ter Cunhal e Salazar como possíveis vencedores deste “jogo” não é assim tão surpreendente.

As duas ideias a reter deste texto sobrevivem para lá dos exemplos oferecidos. Primeiro, sempre que a recolha de informação dependa da vontade em participar, por parte dos elementos da população em estudo, devemos ter em conta os incentivos que os vários “tipos” de indivíduos têm nessa “auto-selecção” amostral. Segundo, se esses incentivos forem assimétricos, os resultados obtidos poderão ser muita coisa – interessantes, um convite à reflexão, até uma boa aproximação à realidade –, mas nunca serão estatisticamente representativos.