quarta-feira, junho 28, 2006

O fumo dos outros

Ao Estado cabe informar, não recomendar. O paternalismo desta proposta de lei anti-tabaco fere-a com gravidade.

A proposta de lei anti-tabaco está em discussão até 6 de Julho. Antes que haja fumo branco, sublinhamos três ideias: 1) é desejável analisar, de forma separada, a intenção da lei e as medidas apresentadas; 2) o enfoque deve recair, primordialmente, nos direitos das partes envolvidas e, secundariamente, na forma eficiente de os implementar; 3) uma mudança de ‘status quo’ tem de ter em conta o contexto relevante, atendendo às assimetrias existentes. Vamos por partes.

A intenção da lei é clara: pretende-se ”salvar” fumadores e não fumadores, maximizar a esperança de vida de ambos, cumprindo o constitucional ”direito à saúde”. A frase de abertura é elucidativa: ”O consumo de tabaco é, hoje, a principal causa evitável de doença e de morte”. Mas acreditará o ministro da Saúde que a morte é evitável? E admitirá a interferência nas escolhas privadas de adultos autónomos? Ao Estado cabe informar, não recomendar. O paternalismo desta proposta de lei fere-a com gravidade.

As medidas apresentadas visam proteger os não fumadores do fumo alheio, atribuindo-lhes o direito de propriedade do ar partilhado. Proteger alguém de uma agressão exterior parece justo. Será eficiente? Ronald Coase, Nobel da Economia em 1991, mostrou que a negociação entre agentes, na presença de uma externalidade, resulta numa situação eficiente desde que os direitos de propriedade sejam claros. Essa negociação é fácil para um casal que decide a política de fumo em sua casa. Contudo, à medida que o número de agentes envolvidos aumenta, ela torna-se mais difícil, senão impossível. É aqui que entra, justificadamente, o Estado.

E, claro, onde há intervenção estatal há polémica. A maior envolve os estabelecimentos de restauração. Apenas os que tenham mais de 100m2 de área poderão ter zonas de fumadores – e até 30% da área total. A diferenciação é realista, dado que em áreas pequenas não é possível isolar o fumo. E os direitos dos proprietários? Porque não adoptar – perguntam os críticos – a solução espanhola, onde o proprietário pode escolher a política de fumo da casa? O ministro responde que isso poria em causa a eficácia da medida. Diz bem. Resta saber se a eficácia acrescida justifica a restrição de direitos.

A nosso ver, sim – mas apenas de forma excepcional e temporária. O ideal seria ter um período limitado (cinco anos?) em que vigoraria a actual proposta de lei, após o qual seria dada liberdade de escolha aos proprietários. A restrição permitiria a ”vivência” de uma solução diferente da actual – onde o enviesamento a favor dos fumadores é inegável – tendo em vista uma acrescida liberdade de escolha futura. É natural que certos liberais ”puros” se oponham a isto com unhas e dentes. Mas neste caso, para bem julgar, melhor primeiro experimentar.

quarta-feira, junho 14, 2006

Ondas de paixão

Ondas de paixão? Tudo a favor, se forem vividas individualmente. E de forma consciente. Que é como quem diz: seja responsável, entusiasme-se com moderação.

No dicionário, encontramos: intenção, propósito, projecto. Indícios de que um desígnio tem uma forte carga subjectiva. Em Portugal, é difícil que esta palavra não traga acoplada uma outra: nacional. Tivémos a Expo-98, o Euro-04 e, recentemente, o namoro falhado com o nuclear. Tudo grandiosos ”desígnios nacionais”. Os quais, como é natural (dadas as suas dimensões), não dispensaram alguma polémica. Uma notável excepção, pela sua larga indisputabilidade, é a ideia lançada por José António Saraiva em ”Um destino para Portugal” (”Expresso”, 21-06-03).

Falamos, claro, do ”mar”. No seu artigo, Saraiva, qual Posídeon, anuncia: ”O futuro de Portugal passa, pois, pelo restabelecimento da relação com o mar a que irresponsavelmente voltámos costas. (...) Falta-nos um rumo, qualquer coisa que nos oriente. (...) Por razões históricas, políticas, militares e económicas, deve ser este o destino de Portugal.” Se não há grande solidez argumentativa ao longo do texto, o seu estilo, entre o poético e o saudosista, agrada e galvaniza. A ideia do regresso ao mar (uma infância colectiva perdida onde fomos felizes?) torna-se terreno fértil para disputas retóricas inconsequentes. A prova é que não há, hoje, panfleto político que não inclua loas ao seu poder curativo para os males do país.

Sejamos claros: é a tónica posta no colectivo que surpreende. Refere-se a ”nossa” (des)orientação, a ”nossa” (ir)responsabilidade, o ”nosso” destino. Mas não é a felicidade algo individual, subjectivo, dificilmente comparável e agregável? Não é cada pessoa responsável pelo seu destino? A surpresa é tanto maior quanto maior é a distância face a ideais socialistas de outrora. E aqui, a propósito do Mundial da Alemanha, entra em campo Luís Delgado: ”Precisamos de alegrias, de bons resultados, de animação e convicção (...) para nos ajudar a passar (...) os momentos de crise, angústia e dificuldade que vivemos há muitos anos” (DN, 05-06-06). Mais uma vez, nas duas dimensões apresentadas – os estados de alma e a sua cura –, a ênfase no colectivo é bem mais que reincidente.

Não querendo parecer excessivamente individualista, desconfio do potencial de alienação deste tipo de discurso, seja em relação ao mar, ao futebol ou a qualquer outro sonho abrangente. Também não creio que combater mitos sebastianistas com mais sebastianismo seja eficaz. Acredito, até, que um cidadão atento de uma democracia liberal sinta, quando confrontado com o messianismo desresponsabilizador de um ”desígnio nacional”, uma certa afronta. Ondas de paixão? Tudo a favor, se forem vividas individualmente. E de forma consciente. Que é como quem diz: seja responsável, entusiasme-se com moderação.