terça-feira, maio 29, 2007

Contas individuais

Não percebo a justiça de ter de pagar, na mesma proporção, consequências previsíveis das escolhas livres de cada um.

Um princípio geral: se A é mais responsável por X do que B, A deve ser mais responsabilizável do que B pelo que decorre de X. No caso da saúde, e porque a existência digna de cada um de nós depende muito dela, faz todo o sentido juntar a este princípio uma cláusula contratual de partilha de risco e de alguma entre-ajuda, nomeadamente em caso de catástrofe – para qualquer um – e, de forma geral, aos mais desprotegidos. O que não faz sentido é perder de vista o princípio enunciado.

Não me interessa o estilo de vida que cada um leva. É-me indiferente que o meu vizinho coma batatas fritas todos os dias, tenha auriculares nos ouvidos o tempo todo ou beba meia garrafa de ‘whisky’ antes de se deitar. Só não percebo a justiça de ter de pagar, na mesma proporção, algumas previsíveis consequências dessas escolhas livres. O princípio do consumidor-pagador deve ser a base de partida – embora, nesta área, nunca o fim. O que é incrível é que subsista, aqui e ali, a defesa demagógica da saúde “tendencialmente gratuita”, como se ela não fosse paga por todos.

Os custos decorrentes de uma deficiência genética e de certos cancros devem ser comparticipados a 100%. O mesmo não acontece com os problemas auditivos da geração 'iPod'.

Uma alternativa residiria em evoluir para um sistema misto, de contas individualizadas complementadas por um fundo comum, financiado por descontos obrigatórios. A conta receberia uma parcela do salário e ficaria cativa. Poderia ser usada para adquirir seguros privados, mas não para qualquer outra despesa ao longo da vida. A utilização do serviço público de saúde implicaria um débito nessa conta, que poderia ter um saldo temporariamente negativo e receber transferências privadas exteriores (ex: instituições de solidariedade). Ninguém seria marginalizado no acesso a cuidados básicos.

Um sistema como este não se implementa num dia, mas a sua rejeição liminar por motivos ideológicos exige que se recorde o quão urgente é repensar o actual modelo do SNS, em face da evolução dos custos unitários de certos tratamentos e da demografia. Não há nada de “neo-liberal radical” nesta proposta. Apenas se considera que não é justo que cada um pague sempre tudo por igual. Os custos decorrentes de uma deficiência genética, de certos cancros e de outras doenças relativamente aleatórias devem ser comparticipados em 100%. O mesmo não acontece com a arteriosclerose ou os problemas auditivos da geração ‘iPod’. Um pouco mais de responsabilidade individual só faz bem.

quarta-feira, maio 16, 2007

Mediocridade e policiamento

Mediocridade e policiamentoPode invocar-se a existência do noticiário da noite do outro canal público para justificar a mediocridade do Telejornal? É evidente que não.

1. Mais por dever do que por prazer, vejo uma telenovela todos os dias: o Telejornal da RTP. A forma como tem sido noticiado o desaparecimento de uma criança é apenas mais um sinal de uma “tabloidização” do principal noticiário do canal público que vem de longe. Um crime passional – que “ninguém previa” - ou uma lesão – “vital” – de um jogador de futebol relevam mais que a actualidade política, incluindo momentos institucionais, como um discurso do Presidente da República. Pode invocar-se a existência do noticiário da noite do outro canal público para justificar a mediocridade do Telejornal? É evidente que não. O mínimo de competência e brio profissional que se espera de um serviço público de televisão é suficiente para que qualquer seu noticiário seja sóbrio, curto e bem alinhado.

2. Por telefonemas, auto-censura ou um estranho sentido de missão, o actual Governo tem sido tratado como outros nunca foram. Incêndios, greves e demais inconveniências aparecem esbatidas. O caso “UnIgate” esteve mesmo ausente, por vários dias, do Telejornal porque “os jornalistas não tinham material próprio sobre o tema”. Disse-o o Director de Informação da RTP, num programa apresentado por um senhor afável que, não obstante limitar-se a “dar voz” a telespectadores e jornalistas, se apelida de “provedor”. Um epíteto tranquilizador, sem dúvida.

Por telefonemas, auto-censura ou um estranho sentido de missão, o actual Governo tem sido tratado como outros nunca foram. Incêndios, greves e demais inconveniências aparecem esbatidas.

Em cima do bolo, duas cerejas. Pina Moura, que acha natural e até desejável que as televisões tenham linhas editoriais claras, não parecendo compreender que um jornal não é, neste ponto, comparável a um canal de televisão. (Mas, em abono da verdade, diga-se que o próprio admite não saber muito de ‘media’, tendo sido escolhido, explica, pelos contactos que tem na alta finança e na classe política). E a ERC, que, entre outros inaceitáveis ímpetos regulatórios, se propõe cronometrar o tempo dado a diferentes forças políticas em noticiários e programas de debate. Será que, ao menos, os seus ilustres membros dão valor à “relevância” da informação e ao “mérito” da opinião?

Quem defende algum serviço público de televisão de qualidade e se opõe à regulação centralista dos ‘media’ fica desconsolado perante tudo isto. Em nome da liberdade, é essencial lutar contra estas e outras formas de anestesia, antes que a asfixia seja total.

quarta-feira, maio 02, 2007

Taxa plana, taxa óptima

A ideia da taxa plana só pode vingar se enquadrada num bom programa político, nunca como ‘soundbyte’ oportunista.

Uma das vantagens da “taxa plana” de imposto sobre o rendimento pessoal é a existência de uma única taxa marginal, que torna o processo de cálculo e pagamento de impostos consideravelmente mais simples para todos. Dependendo do seu valor, e da forma como a economia reage a uma dada mudança fiscal, as receitas arrecadadas podem subir ou descer. Se o Estado deve fazer uma dieta do tipo A ou B é, portanto, uma questão distinta.

São duas as críticas àquela que é mais conhecida por ‘flat rate’: (1) que não permite progressividade fiscal e (2) que prejudica os mais pobres. Duas ideias bastante insustentadas. Para que exista progressividade fiscal, com a taxa plana, é condição necessária e suficiente que algum rendimento inicial esteja isento de imposto. Por exemplo, uma taxa marginal de 25%, com isenção fiscal sobre os primeiros 400 euros mensais, faz com que a taxa média de imposto para quem aufere 500, 1.000, 2.000 e 10.000 euros mensais seja, respectivamente, de 5%, 15%, 20% e 24%. Para que os mais pobres não fiquem pior, basta que a taxa adoptada não seja demasiado elevada – e tendo em conta o valor de rendimentos isentos. Se é consensual que são os ricos quem mais facilmente foge aos impostos, talvez conviesse lembrar a alguma esquerda que tantos anos de taxas de IRS progressivas não pareceram ter grande efeito sobre a elevada variância na nossa distribuição de rendimentos. Entre a lei e a realidade vai, entre outras coisas, a distância importante de as pessoas poderem tomar escolhas livres, reagindo a incentivos.

Talvez conviesse lembrar a alguma esquerda que tantos anos de taxas de IRS progressivas não pareceram ter grande efeito sobre a elevada variância na nossa distribuição de rendimentos.

Desde os anos 70 que vários estudos apontam para que um esquema linear de imposto seja a forma óptima de alcançar certos objectivos de eficiência e de equidade. Acabando com as taxas marginais muito altas, incentiva-se o trabalho e desincentivam-se a evasão e a fuga fiscais. Muitas preocupações com a equidade podem ser mais eficazmente alcançáveis por outras vias. Não deve ser tabu, por exemplo, reflectir, no âmbito da UE, sobre a reposição de uma taxa de IVA superior para bens de luxo e de “estatuto”.

Qualquer política fiscal deve ser perspectivada a 15-20 anos, não a dois – como já escreveu o director deste jornal. Mais: a ideia da taxa plana só pode vingar se enquadrada num bom programa político, nunca como ‘soundbyte’ oportunista. Por agora uma miragem, portanto.