terça-feira, outubro 31, 2006

Afinar a pontaria

Num debate, como o do aborto, em que tudo se converte facilmente em ruído, espera-se do primeiro-ministro contenção nas palavras e discrição nos actos.

A interrupção voluntária da lucidez ainda mal começou. Todavia, tempo para que ela prospere não falta. Serão três meses até ao dia do juízo segundo – o dia de voltar a auscultar os eleitores sobre o aborto antes das 10 semanas. As opiniões abundam, mas um consenso parece existir: o de que o seu resultado dependerá largamente da actuação de uma pessoa. Falo, claro, de José Sócrates.

José Sócrates tem dado provas de ser um bom gestor da sua equipa governativa, do seu partido, das expectativas criadas em torno da governação. Em face dos seus diversos antecessores (e com quem mais seria justo comparar?), o líder dos socialistas tem-se revelado um homem de relativa coragem política. É justo, por isso, conceder-lhe algumas palmas. As palmas exactas que merece um candidato não distinto a um galardão que tem de ser de qualquer modo entregue.

Mas ser um bom gestor é, como diria o outro, ser um bom gestor. Não dá para tudo. E ao actual primeiro-ministro faltam certas qualidades que, dados os meandros da questão do aborto, lhe aconselhariam maiores prudência e resguardo. Debitar ‘sound-bytes’ sobre o programa MIT ou as SCUT é coisa bem diferente de entrar no terreno da ética e da política pura. Sem a eloquência, o sentido de ponderação e o respeito genuíno pelas ideias opostas que caracterizam os políticos excepcionais – como Tony Blair, por exemplo –, falar pouco seria a opção sensata a tomar por José Sócrates. Seria, também, dados os seus objectivos, a escolha mais eficaz. Vejamos.

As opiniões expressas em sondagens, como refere Pedro Magalhães (”Público”, 23-10-06), nem sempre representam fortes “convicções”, mas sobretudo “predisposições” e “considerações”. Daqui resulta um enorme potencial de influência sobre o sentido final de voto de muitos eleitores. No combate que se avizinha, a vantagem “formal”, dado o ‘statu quo’, está do lado do ‘não’. Sócrates tem de interiorizar que o mais importante para o sucesso do ”sim” será atender às motivações e valores das pessoas que, estando naturalmente inclinadas a votar ”não”, não excluem totalmente o voto contrário.

Ora, constantes, pouco elaborados e por vezes arrogantes apelos à “modernidade” não serão a melhor forma de convencer essa parcela do eleitorado, tendencialmente conservadora. Como diz o povo, “não é com vinagre que se apanham moscas”. Também a insistência no direito a exprimir uma opinião pessoal concorre, dada a sua natural irritabilidade, para um resultado oposto ao pretendido, sendo isto agravado ainda pela sua posição de autoridade.

Num debate em que tudo se converte facilmente em ruído, espera-se do primeiro-ministro contenção nas palavras e discrição nos actos. E pede-se algo mais: pragmatismo. Para que jamais lhe possam atirar à cara que não houvera necessidade.

quarta-feira, outubro 18, 2006

Um problema, dois desafios

Imagine que os salários em Portugal eram pagos em 12 e não 14 fracções. Quantos conseguiriam ter o Verão habitual, mais o consumismo do fim de ano?

Não será preciso lembrar as dietas loucas do Verão que passou para convencer o leitor da dificuldade de cumprir o desígnio de ser dono e senhor de si próprio. Cadeados no frigorífico; despertadores fora de alcance; cigarros nas mãos de outros: exemplos do problema de “auto-controlo” não rareiam. O confronto entre o “eu” disciplinado e o “eu” que, como Wilde, não consegue resistir a uma tentação, abunda em estudos de psicologia e de economia do comportamento.

Vencer o desafio pessoal de auto-controlo não é só essencial: é também nobre. Na obra ‘The Theory of Moral Sentiments’, lemos que ‘Self-command is not only itself a great virtue, but from it all the other virtues seem to derive their principal lustre’. A ideia de Adam Smith parece indisputável: quanto maior o auto-controlo, mais intencionais as nossas acções; quanto mais intencionais as nossas acções, maior o mérito do que delas resulta; e quanto maior o mérito resultante, maior o “brilho” das acções virtuosas.

A implicação fundamental da dificuldade de auto-controlo é que uma liberdade restringida pode, por vezes, ser vantajosa. Recordemos o exemplo clássico: Ulisses, seguindo os conselhos de Circe, pede aos seus marinheiros que o amarrem ao mastro do navio e que o não soltem – mesmo que ele peça – antes de passarem a ilha das Sereias. Para testemunhar os (en)cantos das ninfas marítimas sem arriscar a sua vida, o herói da Odisseia decide, conscientemente, diminuir a sua liberdade de escolha.

Passemos ao segundo desafio, não pessoal mas social. Imagine que os salários em Portugal eram pagos em 12 e não 14 fracções. Quantos conseguiriam ter o Verão habitual, mais o consumismo do fim de ano? O exemplo ilustra a dificuldade - bem documentada - de resitir à tentação de gastar, mesmo quando o “eu” racional nos manda poupar. Para muitos, como cantam os Rádio Macau, “amanhã é sempre longe demais”.

A questão do auto-controlo tem uma consequência importante para o sistema de pensões de reforma: a necessidade de haver (alg)uma contribuição obrigatória. Há quinze dias, defendemos aqui uma mudança de paradigma para um sistema misto onde a pedra basilar seja uma componente de capitalização individual, mais transparente. Acrescentamos que a “justiça social” deve influir sobretudo na política fiscal – nomeadamente com impostos progressivos – e não no que cada um receberá depois de uma vida de descontos.

Uma nota final. Limitar a liberdade de escolha para benefício do próprio resvala facilmente para paternalismos que repudiamos (lembremos “1984”, de Orwell). Mas negar a natureza humana, negando o problema do auto-controlo, não é aceitável. Procurar uma forma ponderada e limitada de intervir na esfera individual de cada um – é este, politicamente, o grande desafio.

quarta-feira, outubro 04, 2006

Mudar um paradigma

Como convencer um filho, que vai amealhando dinheiro, que é justo que sejam os seus avós a utilizá-lo, mesmo que um dia ele possa fazer o mesmo aos seus netos?


Para além de intrinsecamente injusto e ineficiente, o sistema de pagamento de pensões ‘pay-as-you-go’ é conjunturalmente insustentável.

É injusto na medida em que não consagra de modo inequívoco a máxima “a cada um segundo os seus descontos”. Como convencer um filho, que vai amealhando algum dinheiro, que é justo que sejam os seus avós a utilizá-lo, mesmo que um dia ele possa fazer o mesmo aos seus netos?

É ineficiente porque distorce as escolhas de poupança de cada agente, gerando uma perda de bem-estar e um decréscimo na actividade económica, que devem ser tidos em conta na avaliação de modelos alternativos (bem como os inerentes custos de transição).

É insustentável sobretudo pela evolução negativa das taxas de natalidade, a grande alavanca da inversão da pirâmide etária. O aumento da esperança média de vida agrava o problema, mas de forma subsidiária: podemos sempre calibrar o tempo de reforma em função do tempo de trabalho.

A proposta recentemente apresentada pelo PSD para o sistema de pensões assenta em dois pilares: um de capitalização (em contas individuais) e outro de repartição (a partir de um fundo global). Ao contrário do que alguns pretendem, não existe qualquer consequência lógica quanto ao fim do actual “modelo social”. Os três principais “seguros” que dele fazem parte – a protecção na doença e no desemprego e o atenuamento, via redistribuição de rendimento, das desigualdades inerentes à lotaria genética –, não têm por que não continuar. Misturar os assuntos é pura demagogia.

O ministro da Segurança Social afirmou que, no curto prazo, a solução do PSD poria em risco o sistema vigente. É uma afirmação que merecia um puxão de orelhas – e que o teve. Defendendo uma componente de capitalização ainda mais forte, o Compromisso Portugal ofereceu a solução óbvia a Vieira da Silva: emitir dívida pública no montante das responsabilidades já assumidas.

Contrair dívida pública é, grosso modo, igual a subir impostos no futuro – a famosa “equivalência Ricardiana”. A ideia é simples: se as futuras gerações pagarão inevitavelmente uma factura X, por que não pedir em adiantado o montante dessa factura? Juros à parte, ele será irrelevante: não é mais caro nem mais barato emitir dívida pública. É, no contexto, apenas mais transparente e mais responsável.

Algumas pessoas, nomeadamente socialistas, discordam da necessidade de mudar o paradigma no actual sistema de pensões, fazendo fé em variáveis que o Governo não pode em bom rigor controlar, como o crescimento económico ou a evolução da natalidade. Discordam mal, porque é justo e eficiente que exista uma componente de capitalização. O sonho pode comandar a vida de cada um, mas em política convém ter os pés bem assentes no chão.