quarta-feira, fevereiro 22, 2006

As caricaturas e o sagrado

A lei não é um repositório da moral. Muito menos da virtude. O “permitido” não tem de coincidir com o “desejável”. E o peso do costume não pode ser ignorado.

Numa sociedade liberal, onde não há um “fim comum” para onde todos devam caminhar, o “desejável” só pode ser o que cada cidadão quiser, uma medida necessariamente individual. A defesa da liberdade de expressão não nos impossibilita de criticar aquilo que resulta do seu uso – isso seria até paradoxal. O problema está em confundir a natureza de valores hierarquicamente distintos. Que o “bom senso” e a “moderação” sejam qualidades apreciáveis, é consensual. Que a liberdade de expressão tenha de ter precedência sobre elas, também deveria ser. E é isso que desaconselha uma restrição maior das liberdades inscritas na lei. Para resolver os conflitos – que são o melhor sinal de que há liberdade e pluralismo – temos os tribunais. Pretender impor como lei uma determinada concepção de virtude é, no mínimo, perigoso. E absolutamente lamentável quando parte de políticos que não diferenciam as esferas do “público” e do “privado”, tal é o desejo de partilhar a sua visão “pessoal” sobre a razoabilidade das caricaturas e de fazer doutrina. Aqui, Freitas do Amaral ganha o prémio do “pior é impossível”. Com distinção.

A liberdade e expressão não é um valor absoluto. Tem limites. Um exemplo? Ideias não são actos. Uma coisa é caluniar, parodiar, ridicularizar. Outra é incitar à violência, queimar embaixadas, ameaçar de morte. Existem, de facto, dois “sagrados” aqui em confronto: a liberdade de expressão e a religião. Não vale a pena escondê-lo. Acontece que cada casa tem as suas regras, e convidados não são anfitriões. As caricaturas foram publicadas por um jornal dinamarquês, não líbio ou jordano. Se não é difícil “compreender” a indignação causada, é impossível “aceitar” os contornos que ela tomou. Em bom português: quem está mal, muda-se.

A polémica das caricaturas não surge espontaneamente. Responder às manifestações violentas de forma irreflectida e incendiária é fazer o jogo do adversário. Apelar, como fez um ministro italiano, à impressão de t-shirts com as caricaturas, é de mau gosto e muito pouco inteligente. Tolerável para o comum cidadão, inaceitável para um político de primeira linha. A verdade é que tudo isto pouco ou nada surpreende numa UE onde escasseiam lideranças fortes, e onde a ideia de uma política externa “comum” oscila entre o risível e o surreal. O que torna necessário relembrar isto: quando as liberdades de expressão e de imprensa – dois pilares “sagrados” da velha Europa – são defendidas de forma tão titubeante e heterogéna pelos seus actuais líderes, devemos ficar preocupados. E muito atentos. De contrário, talvez acordemos um dia a perguntar se a liberdade ainda mora aqui.