quarta-feira, outubro 31, 2007

Ética e rendas económicas

Valores exactos à parte, estranho seria que um bom administrador não ficasse com uma fatia significativa do excedente criado.

1. A ética empresarial é um terreno escorregadio. Na óptica do accionista, um negócio serve para criar valor, não para ser um poço de virtudes. Contudo, algumas regras – umas escritas, outras nem tanto – querem-se cumpridas. Jardim Gonçalves, ao pagar a dívida do seu filho, reconhece ter cometido um erro; ou então considera que 12 milhões de euros é um preço aceitável a pagar para abafar acusações injustas de falta de idoneidade na concessão desse empréstimo. No primeiro caso, não se tiram as consequências devidas desse “arrependimento”; no segundo caso, lida-se de forma duvidosa com o dinheiro dos accionistas. De qualquer modo, a imagem do banco fica de momento ferida.

2. Têm-se avolumado as críticas às remunerações dos administradores do BCP. Mesmo os que dirigem o BPI, agora interessados numa fusão, recentemente se insurgiram contra os seus prémios chorudos. Mistura-se muito esta questão com a da boa governança, o que é de algum modo compreensível - mas só até certo ponto. No século XIX, David Ricardo explicou que as “rendas económicas” geradas por um negócio são apropriadas pelos detentores dos factores de produção relativamente mais escassos. E dá o exemplo de dois terrenos de cultivo com diferente produtividade, explicando que o lucro “anormal” do terreno mais produtivo irá para o seu dono, que detém o recurso mais escasso – a terra de superior qualidade –, e não para quem nele labora, que ganhará o que receberia por trabalho idêntico num terreno alternativo.

Muitas qualidades da economia de mercado fundam-se na ideia de concorrência. A fusão Millennium-BPI não é desejável.

Numa empresa cotada a situação é análoga. Os accionistas são em larga medida substituíveis, pelo que devem ser remunerados sobretudo de modo a compensar suficientemente o risco que correm. Os trabalhadores que contribuem de forma marcada para o sucesso da empresa têm direito a receber parte dos lucros gerados. De entre estes, os que delineiam a estratégia do banco e o dirigem são os mais insubstituíveis. Valores exactos à parte, estranho seria que um bom administrador não ficasse com uma fatia significativa do excedente criado. A questão (importante) da desigualdade de rendimentos tem de ser pensada num contexto e numa escala bem diferentes.

Nota: A liberdade empresarial é um bem essencial mas não absoluto. Muitas qualidades da economia de mercado fundam-se na ideia de concorrência. A fusão Millennium-BPI não é desejável.

quarta-feira, outubro 17, 2007

Os encantos de Che

As consequências das acções de assassinos políticos têm de importar mais do que a sua estética e as suas intenções.

Costumo apreciar e bastantes vezes até concordar com o que escreve Ricardo Costa neste jornal. Qual não foi o meu espanto quando na sexta-feira passada o vejo testemunhar que tem e veste orgulhosamente uma camisola de Che Guevara. Diz o director da SIC Notícias que Che foi um “bandido e criminoso”, mas teve “a rebeldia e o romantismo como poucos têm”. Isso e outros ingredientes – “a época, o pioneirismo, a juventude” – “fazem dele um ícone único e fantástico”, e isso faz Ricardo Costa ter uma camisola do Che. Procurando apoiar a sua paixão com uma referência autorizada, o jornalista menciona o cartaz do Financial Times em que Branson é retratado por cima da cara de Che, oferecendo uma interpretação que, com o devido respeito, não tem qualquer sentido.

Não estamos perante um branqueamento. Antes estivéssemos. Quando ouvimos Fidel ou Chávez ou Jerónimo a tecer loas a Che, não ligamos demasiado. Sabemos que a cegueira da religião do comunismo ainda sobrevive. Contudo, quando alguém que vemos como um espírito liberal opta por estes relativismos, instala-se um certo desespero. Não pela pessoa em si, entenda-se, mas pelo que isso sugere sobre o que será o pensamento do português mediano.

Quando ouvimos Fidel ou Chávez ou Jerónimo a tecer loas a Che, não ligamos demasiado. Sabemos que a cegueira da religião do comunismo ainda sobrevive.

Quem negará que o 11/9 foi um acto “espectacular”, obra de uma “mente brilhante”, que fez de Bin Laden um “ícone” para muitas pessoas? Quem questionará que Hitler tinha uma grande “rebeldia” e um enorme “pioneirismo”? O que importa isso senão para reforçar a luta contra os seus seguidores?

Hitler e Che não são equiparáveis. Hitler aniquilou, de forma planeada, todos os que a sua “solução final” exigia aniquilar. Che abateu, de forma ‘ad-hoc’, todos os que se foram tornando um obstáculo à sua romântica utopia. O que fizeram tem graus obviamente incomparáveis. Mas eles partilham – e é essencial acentuar isso – o desprezo pela vida humana e a disponibilidade para recorrer a qualquer meio para fazer vingar o mundo totalitário com que sonhavam.

A ideia de que os mortos do comunismo não são um corolário desse ideal mas um resultado da “impureza” dos homens é inaceitável em 2007. As consequências das acções de assassinos políticos têm de importar mais do que a sua estética e as suas intenções. De sedutores e de boas intenções está o inferno cheio.

quarta-feira, outubro 03, 2007

“Abu Ghraib” dos pequeninos

A desproporção entre o número de praxantes e praxados revela que são poucos os que preferem fazer uso desse “direito adquirido”.

Uma academia de qualidade caracteriza-se, entre outras coisas, pela ausência de barreiras hierárquicas entre os seus membros, por um respeito mútuo universal e por um sentimento de pertença à comunidade universitária. A praxe é a negação de tudo isto: um exercício de poder marcado pelo desrespeito pelo outro, pela possibilidade de o ostracizar de modo arbitrário e onde tudo se resume a uma questão de hierarquias. Comparado com o ‘bullying’ na escola, a praxe tem as agravantes de ser uma prática institucionalizada, levada a cabo por e sobre adultos e em instituições onde o acesso não é imediato mas dependente do mérito.

Há quem defenda que a praxe é uma boa forma de integração e que muitos caloiros as consentem e se divertem com elas. Há ainda quem defenda que elas são um “investimento rentável” porque o caloiro sofre um custo no primeiro ano, mas tem depois vários anos de benefícios, se resolver exercer o seu direito à vingança sobre – e usando o jargão habitual destas festividades – as “fornalhas” seguintes de “carne fresca” e de “animais”. Vamos por partes.

A praxe é a (...) um exercício de poder marcado pelo desrespeito pelo outro, pela possibilidade de o ostracizar de modo arbitrário e onde tudo se resume a uma questão de hierarquias.

É inegável que, no contexto actual, algumas actividades das praxes contribuem para a integração de alguns alunos, e existirão seguramente intenções boas em muitos praxantes. Mas nada disso torna as praxes mais suportáveis. O direito a coagir e a humilhar o outro é simplesmente intolerável – e isso é suficiente para as excluir cabalmente. Quem defende que a praxe é um investimento com retorno apreciável esquece-se de que o “contrato” entre as partes raramente é feito de livre vontade. A desproporção entre o número de praxantes e praxados revela que são poucos os que preferem fazer uso desse “direito adquirido”.

Os reitores e demais dirigentes das nossas universidades são largamente complacentes com esta tradição. Incorrem no pecado mortal que Pacheco Pereira apontou aos “notáveis” do PSD: a “acedia” – a apatia em praticar a virtude, a indiferença face ao mal. Por que não tomam, concertadamente, uma posição que permita acabar com o ‘statu quo’ actual, de rituais de dominação e subjugação que lembram, com as devidas diferenças, o grotesco “Saló ou os 120 dias de Sodoma”? Há imensas formas não coercivas de integrar os alunos. Pactuar com essas pequenas amostras de “Abu Ghraib” é tudo o que uma universidade não pode ser.