quarta-feira, novembro 29, 2006

Conluio nas entrelinhas

As subtilezas de certos tipos de conluio tácito representam um desafio gigante para qualquer entidade reguladora.

Por vezes, um exemplo vale mais do que mil palavras. Na Alemanha, dez lotes de espectro GSM foram a leilão em 1999, sendo a Mannesman e a T-Mobil os únicos candidatos credíveis. O leilão era “simultâneo” e “ascendente”: em cada ‘round’, as licitações eram anunciadas simultaneamente e o incremento mínimo para uma contra-licitação era de 10%. Assim que nenhum incremento fosse proposto, o leilão terminaria.

A expectativa era grande. A surpresa foi maior. No primeiro ‘round’, a Mannesman ofereceu 18.18 (milhões de marcos por Mghz) por cada lote 1-5 e 20.00 por cada lote 6-10; a T-Mobil propôs valores mais baixos. No segundo ‘round’, a T-Mobil propôs 20.00 por cada lote 1-5, não fazendo qualquer oferta sobre os restantes. Como o leitor já terá adivinhado, o leilão acabou no ‘round’ seguinte. Ou seja: cinco lotes para cada empresa, a um preço igual e muito aquém do esperado.

Mais tarde, os responsáveis da T-Mobil afirmaram aos jornalistas que a proposta inicial da Mannesman fora uma “oferta clara”. Nem um linguista nem um economista se atreveriam a negar a importância da comunicação subliminar presente neste caso. O primeiro lembraria que qualquer acto de comunicação só pode ser compreendido se prestarmos atenção não apenas ao “enunciado”, como também à “intenção” do locutor e ao “efeito” que este procura ter no destinatário. O segundo sublinharia a estratégia de envio de um “sinal” sugerindo cooperação entre as partes. Juntos, poderiam escrever que o conluio não se cose apenas por várias linhas: coze-se também nas entrelinhas. E tudo pelo pormenor de 18.18 acrescido de 10% ser (aproximadamente) igual a 20.00.

Três ideias merecem destaque. Primeira: no contexto de leilões, concursos e demais mecanismos de selecção directa, é preciso ser cuidadoso na escolha das regras, uma vez que estas poderão ser aproveitadas para formas de conluio tácito e legal, minando o sucesso pretendido (o conluio ilegal – a corrupção – não cabe aqui).

Segunda: em qualquer mercado onde exista alguma concorrência, o conluio pode tomar múltiplas formas, sendo a mais comum a subida não concertada de preços, em que um aumento unilateral é lido como um “convite” à subida dos preços dos restantes concorrentes, resultando (se “aceite”) em lucros acrescidos para as empresas e menor bem-estar para os consumidores. Os mercados das telecomunicações móveis, da aviação e da banca são, pela sua natureza, especialmente propensos a este tipo de estratégia.

Terceira: as subtilezas de certos tipos de conluio tácito representam um desafio gigante para qualquer entidade reguladora. Um desafio que exige bem mais do que a competência e a dedicação de um Watson; um desafio que pede inspiração na minúcia, na imaginação, na astúcia de um Sherlock Holmes.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Realismo e incoerências

Nem tudo o que é ilegal ou ilícito é imoral (ex: conduzir uma mota sem capacete) e nem tudo o que é imoral tem de ser ilegal ou ilícito (ex: trair um amigo).


Conta-se que Bernard Shaw (1856-1950) terá perguntado a uma senhora, num jantar, se por 1.000 libras aceitaria ter sexo com um homem. A resposta – afirmativa – levou-o a propor o mesmo por 1 libra. A senhora ripostou: “Por quem me toma? Uma prostituta?”. O escritor replicou: “Isso nós já determinámos. Agora apenas discutimos o preço”.

Para o que aqui importa, a moral desta história é simples: haverá sempre quem encare escolhas que a sociedade entende estarem no campo da ética – ou seja, fundamentalmente para lá de uma análise de custo-benefício – assim mesmo: como uma mera questão de preço. Não há razão para crer que esta regra geral encontre uma excepção nos guardas prisionais.

Talvez João Pereira Coutinho não concorde comigo. Diz ele que “admitir a troca de seringas é admitir que existe tráfico nas prisões” e, por conseguinte, “admitir que a corrupção abunda” (Expresso, 06-11-06). Deixando de lado o subrepticiamente tendencioso “abunda” (a lógica pedia um mero “existe”), vemos um orgulhoso conservador – essencialmente, um céptico – iludido com a natureza humana. Espantosa contradição. Depreendemos ainda que “admitir” um facto implica “aprová-lo” ou até “incentivá-lo”, o que é falso, obviamente falso.

Apenas 1% dos 40% de reclusos que usam drogas o fazem por via endovenosa e 30% dos reclusos são portadores de doenças infecciosas. O programa de troca de seringas proposto pelo Governo terá, portanto, um efeito directo pequeno, mas positivo e importante numa óptica de minimização de riscos. Sendo a questão da segurança ultrapassável, e havendo programas alternativos de recuperação, resta sublinhar uma prioridade: apostar nas Unidades Livres de Droga, como refere o director do ”Público” em editorial de 06-11-06.

José Manuel Fernandes merece, contudo, um reparo, sobretudo à luz do seu posicionamento liberal-libertário recente. A ideia de que “quem promove estes programas não condena moralmente o consumo de drogas apesar de estas destruírem física e psicologicamente milhões de seres humanos” causa estranheza, já que do “apesar” se deduz a defesa de uma dimensão moral no consumo de drogas. Ora, esse consumo não viola em si mesmo qualquer liberdade alheia. Logo, só com um generoso “aditivo” de moralismo social poderá alguém noutras áreas liberal defender tal coisa.

Confunde-se em demasia lei e moral. Mas nem tudo o que é ilegal ou ilícito é imoral (ex: conduzir uma mota sem capacete) e nem tudo o que é imoral tem de ser ilegal ou ilícito (ex: trair um amigo). Temos de perder o hábito de querer – por moralismo, paternalismo ou simples autoritarismo – regulamentar comportamentos alheios que não afectem outros directamente. Temos de ser mais liberais. E – em coerência – liberais para todas as estações.