quarta-feira, setembro 20, 2006

Licença para pensar

A empregabilidade de alguém formado numa universidade inglesa é elevada, sem que isso seja o objectivo fundamental da instituição.

Como João Carlos Espada assiduamente nos relembra, Oxford não seria a mesma sem os seus ”quadrângulos”, as ‘drink parties’ de ‘black-tie’ e os jantares animados nas ‘High Table’. O lado pitoresco da vida social de Oxford tem muito que se lhe diga, é um facto. Mas cinjamo-nos aqui à vida académica. Mais concretamente, ao mundo dos ‘undergraduate students’, com destaque para duas coisas: o método de ensino baseado nos ‘essays’ e o modo como se chega à nota final de curso.

A discussão com o tutor de ‘essays’ elaborados pelo aluno é a base do sistema tutorial inglês. Não é fácil explicar o que é um ‘essay’. É uma pergunta, de âmbito geralmente alargado, cuja resposta deverá revelar um forte espírito crítico, mais do que mero conhecimento da matéria tratada. O debate regular das opiniões oferecidas pelo aluno desenvolve a sua capacidade de comunicação de forma notável. A reflexão individual, prévia à sessão e tantas vezes feita no meio de uma dezena de livros, é um dos desafios intelectuais maiores do estudante, para quem a redacção semanal de uma mão cheia de ‘essays’ será rotina certa durante três anos. Portanto: trabalho, responsabilidade, autonomia.

A nota final de cada aluno é atribuída exclusivamente com base nos exames finais. Os temidos ‘finals’ – pouco menos de dez – concentram-se em cinco ou seis dias seguidos. A avaliação ao longo do curso não conta para a nota final. Não há ”segunda chamada” e a ”época especial” é mesmo especial. Ou seja: só há uma oportunidade para vingar. O sistema é, de certo modo, injusto, mas prepara o aluno para a vida, onde momentos cruciais e irrepetíveis não faltarão. Nos ‘finals’, os alunos têm de responder a cerca de 30% das perguntas propostas, o que os incentiva a, com total liberdade e por sua conta e risco, optar pela especialização em alguns assuntos. No final do curso, o aluno terá um domínio muito bom de vários temas do seu interesse, ao invés de uma ténue lembrança das matérias leccionadas no último semestre.

A falta de empregabilidade de alguns cursos em Portugal é motivo de queixa de muitos. Com alguma razão. ”Alguma”. Curiosamente, a empregabilidade de alguém formado numa universidade inglesa é elevada, sem que isso seja o objectivo fundamental da instituição. Acontece que a postura e as qualidades transversais adquiridas pelo aluno lhe garantem uma flexibilidade apreciável. O corolário de tudo isto é que um bom aluno pode escolher o curso de que realmente gosta. A ideia de incompatibilidade entre vocação e empregabilidade é própria de mentes limitadas num sistema pervertido. Umas poucas excepções à parte, não há razão para que um curso superior não seja, mais do que um certificado de especialidade, um passaporte onde se possa vir a estampar os mais variados carimbos.

quarta-feira, setembro 06, 2006

O retorno das regras

”Dar o exemplo” não pode ser só um chavão. Até porque, no longo prazo, a batota não compensa. E basta de desculpas. Só é patinho feio quem desiste.

Numa ilha deserta, a vida seria um jogo interessante. A incerteza dos actos da Natureza proporcionaria desafios constantes. Faltaria, contudo, um ingrediente: a intencionalidade do outro com quem jogamos. Mesmo que existissem outros animais na ilha, o seu comportamento seria qualitativamente diferente do dos humanos (a tal obriga a ausência de consciência).

Um jogo, em sociedade, tem sempre regras. Os desportos de combate onde ”não há regras” não são excepção, pois que essa cláusula é, ela mesma, uma regra. Toda a interacção social é um jogo. A variação de bem-estar para os participantes determina se um jogo é de soma positiva, nula ou negativa. A prosperidade de um país depende muito do nível de cumprimento de certas regras. O que motiva esta reflexão é o ”problema institucional” em Portugal.

A Justiça é um dos pilares de maior preocupação. Não nos surpreende ver casos de corrupção que terminam em pouco mais do que nada. Porquê, é quase sempre pergunta sem resposta. O enquadramento da prisão preventiva ainda é insatisfatório. Nos jornais, os atentados ao bom nome de actores públicos raramente merecem igual destaque quando se conclui pela não condenção.

O caso Gisberta deixa-nos sem palavras. É notável a escassez de fotos publicadas da vítima desse crime hediondo (obrigado, Fernanda Câncio, pela diferença). Terá sido apenas uma ”brincadeira”, dizem os juízes. Intencionalidade e responsabilidade andam de mãos dadas, mesmo quando se cortam os braços da forma a que assistimos.

A Justiça não está só. Na escola pública, a autoridade de quem é desafiado serve apenas para calibrar o reconhecimento do aluno rebelde. Nas estradas, não vemos por que não transgredir. Nos impostos, se não pagamos ou pagamos tarde, é porque já descontamos muito. O Estado são sempre os outros, quando falamos de deveres. E no futebol, ”mergulhamos” e damos cabeçadas, mas os outros também. Se tudo ”o que importa é ganhar”, ouvimos proclamar...

Duas ideias ajudam a entender isto. Uma é a da ”excepção”, a que todos sentimos ter direito. No espaço público, ser igual aos demais não entra na cabeça dos portugueses. A outra – ilustrada por Domingos Amaral (aqui à esquerda), a propósito de uma festa em Cascais, cujo ruído tardio levou a queixas da vizinhança – é a de que não cumprimos regras mas somos ”humanos”. Nada que ver com os ”chatos” dos suíços ou dos ingleses.

Estaremos, então, condenados à proliferação de jogos de soma negativa? Talvez não. Exijamos a nós próprios e, depois, aos responsáveis políticos e às demais elites – sem falsos moralismos –, um contributo para essa mudança. Para uma cidadania mais responsável. ”Dar o exemplo” não pode ser só um chavão. Até porque, no longo prazo, a batota não compensa. E basta de desculpas. Só é patinho feio quem desiste.