quarta-feira, julho 26, 2006

Borges, A.

António Borges tem-se revelado, com frequência, incomodado. [...] Gostaria de o ver com mais entusiasmo em servir o país – ser competente só, não chega.

António Borges quer voltar para Portugal. Entre outras coisas, porque “quando se está em Portugal há uma alegria de viver diferente” – revelava o social-democrata há 20 meses (Expresso, 06-11-2004). Doutorado em Standford, ex-Dean do INSEAD, ‘vice-president’ da Goldman Sachs, Borges tem um currículo ímpar. As suas qualidades intelectuais e competência profissional são indisputáveis. Revejo-me na sua intolerância à mediocridade. Depois, vêm as divergências.

Borges lembrava que a importância da democracia está em “corrigir os erros”, acrescentando que “Não há melhor regime do que a ditadura iluminada. Se houvesse um príncipe perfeito conseguiríamos maravilhas do país. Veja-se o caso de Singapura. Ou Portugal no tempo de D. João II”. Certo? Certíssimo. E útil, porventura, para interpretar uma recente declaração sua: “Após o Congresso manifestei a minha disponibilidade para trabalhar e trazer uma equipa do melhor que há em Portugal, mas o dr. Mendes não quis”.

Borges tem-se revelado, com frequência, injustiçado e incomodado. A sua postura reclama Pessoa: “A vaidade é a confiança no efeito do nosso valor, o orgulho a confiança em que temos valor. Compreendo que um homem seja orgulhoso; não compreendo que mostre sê-lo”. De pouco vale invocar a parca popularidade tida no país ou o carisma político por provar. O seu raciocínio, como o de qualquer “príncipe perfeito”, é simples: ele tem mérito, ele é “superior”, mas ele não tem poder. Logo, contradição.

Assumido cumpridor da ética católica na sua vida profissional e pessoal – “não roubar ou ser corrupto, ser minimamente leal ou solidário” –, Borges confina o pagamento de impostos à esfera da lei. Fazendo um paralelo entre a fuga ao fisco e o cumprimento do limite de velocidade nas estradas – onde “toda a gente transgride” e “quando se é apanhado e multado se acha que é uma injustiça tremenda”–, Borges revela ter tido uma “certa dificuldade em pagar a sisa correcta”, acrescentando que “porque ninguém paga”, o “incumprimento da lei torna-se mais desculpável” e “impossível de combater”. Sem querer extrapolar das declarações feitas, parece-me haver algo de inegável: a resignação perante um grave problema em Portugal. E resignação não quadra com liderança política.

Borges acrescentava, ainda, que “na política não se ganha literalmente nada”, lamentando-se que, como ministro, ganharia menos de 20 vezes o seu ordenado base, fora a parte variável. Subscrevo a revisão dos salários dos políticos e não comento o que é ganho legalmente e com mérito. Apenas gostaria de ver em Borges mais entusiasmo em servir o país. Ser competente é bom, só que não chega. A vaidade, ainda se tolera. Mas quando o espírito de liderança e a vontade de dedicação à causa pública são titubeantes, é forçoso dizer não, obrigado.

quarta-feira, julho 12, 2006

A incerteza de julgar

O facto de observarmos um erro não implica que a decisão tomada não tenha sido acertada – ou, se quisermos, a melhor possível no contexto relevante.

Disparar, ou não, sobre um potencial bombista suicida? Condenar ou absolver um réu? Rejeitar, ou não, uma hipótese científica? Na actuação policial, como nos tribunais e na investigação académica, são inúmeras as situações em que a possibilidade de escolha é dual e onde existe incerteza relativamente à decisão acertada a tomar. Essa incerteza leva, inevitavelmente, à possibilidade de erro.

Pegando no exemplo judicial, erra-se quando se condena um inocente e quando se absolve um culpado. O primeiro erro, tido consensualmente como o mais grave, fundamenta a “presunção de inocência”. Não obstante ser altamente indesejável, ele ocorrerá – a menos que não se condene qualquer réu sempre que haja um mínimo de dúvida, algo de incomportável na nossa sociedade –, com probabilidade positiva. Portanto, numa população suficientemente numerosa existirão alguns inocentes condenados.

O facto de observarmos um erro não implica que a decisão tomada não tenha sido acertada – ou, se quisermos, a melhor possível no contexto relevante. Confundir isto é não perceber que a avaliação da justeza de uma decisão só pode ter em conta a informação conhecida no momento em que ela se dá. Uma pessoa pode ser presa preventivamente e mais tarde ver essa resolução alterada sem que haja qualquer incoerência. Basta que tenham surgido dados novos que, racionalmente, recomendem a sua revisão.

Um outro caso merece atenção. Há cerca de um ano, um cidadão suspeito de ser bombista suicida foi baleado pela polícia inglesa, dias depois dos atentados de 7 de Julho em Londres. À esquerda, tivemos o previsível: responsáveis políticos destacaram, na análise do que se passou, características como a nacionalidade, a profissão e o estatuto do cidadão morto (brasileiro, electricista, emigrante ilegal). Tudo, como é bom de ver, irrelevante para a deliberação de disparar ou não. Até porque – não devia isto ser óbvio? – nenhuma dessas características era “observável” no momento em que os disparos foram realizados. Mas a coisa não espanta: afinal, adeptos da “vitimização” não faltam por aí.

A posteriori, o que aconteceu foi um erro lamentável. Contudo, a decisão foi provavelmente a mais correcta, dadas as circunstâncias em que se deu. Bento Jesus Caraça dizia não recear o erro, por estar sempre disposto a corrigi-lo. A reparação de erros cometidos – irreversíveis ou não – é, inquestionavelmente, uma questão a que temos de responder. Sem, porém, esquecer duas coisas: primeiro, que uma decisão tomada em ambiente de incerteza acarreta sempre a possibilidade de erro; e, segundo, que ela só pode ser criticada com base na informação então disponível. Não entender isto implica desonestidade intelectual ou falta de lucidez – ou ambas as coisas. Em qualquer dos casos, o erro será mais que certo.